Prezados:
Segue resumo do texto do professor gaúcho Danilo Knijnik, um dos maiores estudiosos da prova no Brasil. Apesar de ter sido publicado em 2006, segue sendo um texto altamente relevante sobre o assunto. Acredito que será relevante na interpretação do NCPC que positiva essa doutrina.
Atenciosamente,
Daniel Coutinho da Silveira
As (perigosíssimas) doutrinas do “ônus dinâmico da prova” e da “situação
de senso comum” como instrumentos para assegurar o acesso à justiça e superar a
probatio diabólica
Autor: Danilo Knijnik
Obra coletiva: Processo e Constituição – Estudos em
homenagem a José Carlos Barbosa Moreira / coord. Luiz Fux, Nelson Nery Jr.,
Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo, RT, 2006, p. 942-951
1. Dentre os sistemas históricos de avaliação das
provas – íntima convicção, prova legal e persuasão racional – é inevitável que
o processo contemporâneo corrobore com o último em que se reconhece a liberdade
do julgador para apreciar a prova limitada pelos elementos constantes dos autos
(CPP, art. 155; CPC, art. 131).
Se por um lado essa fórmula é a que possibilita
resultados mais próprios, por outro apresenta risco evidente de subjetivismo
razão pela qual se postula o aumento do numero de regras para regulamentar
detalhadamente as possibilidades do juízo de fato por erro ou acidentes
(mentira da testemunha falsidade da perícia, impossibilidade de produzir prova,
etc.) no curso do processo.
Há diversas regras construídas pela experiência
jurídica para reduzir ao mínimo os erros nessa seara, merecedoras da atenção do
estudioso do processo civil.
2. O exercício completo do direito à prova é
garantia derivada diretamente do direito de ação. Negar em qualquer situação
sem justificativas plausíveis o exercício da prova é o mesmo que negar acesso à
jurisdição, já que seus princípios fundamentais são negados (devido processo
legal, contraditório pleno, direito à prova lícita).
Não somente a negativa na produção da prova pode
implicar nesse vício, como também a aplicação errada de outras regras
probatórias como a do ônus (CPC, art. 333). Essa é a derradeira regra para que
uma decisão judicial impeça o non liquet.
No direito brasileiro, sua aplicação utiliza-se de 2
(dois) critérios para defini-lo: [a] o primeiro é fixo segundo o pólo da
demanda em que se encontra a parte e [b] conforme a classificação do fato em
relação às teses apresentadas (a prova incumbe ao autor para provar fato
constitutivo de seu direito; ao réu, fato impeditivo, extintivo ou modificativo
de direito do autor).
Conforme essa regra, as dificuldades das partes na
produção probatória não têm qualquer importância para o juízo de fato, não
havendo qualquer preocupação com a legitimidade da decisão, apenas a
preocupação com a superação do óbice a sua prolação. No mesmo dispositivo,
entretanto, há previsão diferente para um caso específico: ao se autorizar a
estipulação do ônus da prova por contrato, afirma-se que essa não poderá
ocorrer quando criar dificuldade para o exercício do direito em questão.
Integrando os dois dispositivos conjuntamente, é de
se indagar: por que restringir a consideração da dificuldade da prova ao ônus convencional,
quando o ônus legal está sujeito às mesmas dificuldades? A mitigação do ônus da
prova em face da probatio diabólica é
aplicável ao caput do art. 333 do
CPC? Em face da iniqüidade da atribuição fixa do ônus probatório (pela
dificuldade de sua produção pelo incumbido), pode o juiz alterá-lo?
3. A discussão comporta diversas respostas:
[a] Argumentos contrários a dinâmica do ônus da prova. Leo Rosemberg (La carga de la
prueba): tais regras devem ser fixas e prévias em nome da segurança
jurídica. Segundo esse autor, por mais que procure averiguar a verdade o que
importa é estabelecer e assegurar a paz jurídica, eliminando de forma
definitiva a incerteza entre as partes. Trata-se de noção clássica do processo
meramente pacificador e não atento aos suas finalidades públicas.
[b] Argumentos a favor da dinâmica do ônus da prova. A defesa desse mecanismo parte de pressupostos diversos de concepção do
processo. Da mesma forma que se confere ao juiz poderes instrutórios para
satisfazer os escopos do processo, não se pode fechar os olhos para flagrantes
problemas advindos da estipulação fixa do ônus da prova. Seria mais uma
conseqüência do giro epistemológico do processo que mudou de sua fase dogmática
para a fase instrumentalista. A fundamentação dessa proposta tem 2 (dois) tipos
diferentes de fundamentação:
[i] Igualdade das partes em bases materiais: Quando
as partes não se encontram em igualdade de condições probatórias, tal instituto
poderia se aplicado (erros cirúrgicos).
[ii] Deveres de lealdade e colaboração das partes
no processo: Dever de colaborar entre si e com o órgão jurisdicional para obtenção
da verdade no processo, observada o princípio de que ninguém seria obrigado a
produzir prova contra si mesmo. [O autor cita entendimento de doutrinador português,
Luso Soares, que entende ser essa idéia anacrônica: a lógica do sistema
processual imporia amplo dever de veracidade mesmo contra si, o que constaria
do CPC português, art. 264 e 456. Diz ainda ser isso reconhecido pela
jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em que haveria condenação por
litigância de má-fé. No Brasil isso teria sido aplicado no TJRS em caso onde se
negou a produção de prova e depois houve tentativa de se beneficiar pela
ausência dela].
4. O
reconhecimento da possibilidade dinâmica da carga da prova (prova deve ser
feita por quem tem melhor condições de fazê-lo) não afasta a imposição de um
ônus estático (prova deve ser produzida conforme a natureza do fato), mas
completa-o. Segundo o autor, somente se busca a carga dinâmica quando
houver situação de probatio diabolica,
pois não pode a lei processual estabelecer regulação que ponha em perigo a
igualdade material garantida pelo direito.
Há quem não entenda dessa maneira, entretanto. Julgam ser a carga
dinâmica uma teoria da facilidade probatória,
devendo se adaptar a cada caso segundo a natureza dos fatos importantes para o
julgamento, disponibilidade ou facilidade da parte para produzir a prova (cita
como representante desses entendimentos certos julgados do TJRS, atribuindo
ônus de provar para o réu em casos de contrato com instituição financeira,
cirurgia médica, etc).
5. A carga dinâmica seria compatível com o
ordenamento jurídico brasileiro, pois seu sistema probatório tende a reconhecer
a igualdade entre os litigantes. Isso fica claro ao atribuir ao juiz
iniciativas probatórias, sendo lógico que se estenda o raciocínio a questão do
ônus.
Tal instituto jurídico deve ser limitado para evitar a imposição arbitrária
da apresentação dos fatos. Para isso é que aquele que for escolhido como onerado
deve ter posição privilegiada em relação
ao material probatório (ex. caso do médico que tem prontuários, exames,
relatório de cirurgia), devendo sofrer rigoroso controle processual não podendo
ser atribuído para compensar inércia de uma das partes, mas exclusivamente para
evitar a probatio diabolica. Assim, não basta posição privilegiada para se
aplicar a carga dinâmica, mas a impossibilidade de produção por quem invoca
essa teoria.
Deve-se considerar na atribuição do ônus a
inviabilidade da prova por [i] fato culposo de uma parte (quando deve ser
incumbida do ônus da prova, vg. CPC, art. 359); [ii] violação dos deveres de
cooperação por uma das partes (caso se dificulte a produção da prova, sofre
sanções da litigância de má-fé; caso se impossibilite, deve ser
responsabilizado pelo ônus de provar, vg. CCB, art. 232 sobre ausência de
perícia médica ordenada pode substituir o exame).
Objetivo do instituto é uma redistribuição
fundamentada e racional do ônus da prova, segundo posição dos litigantes em
relação a relação de direito material e no episódio fático, às trangressões do
dever de colaboração ou a inviabilização culposa da prova.
6. Autor afirma que caso se adote essa teoria, o
ônus da prova não mais poderia ser uma mera regra de julgamento, sendo
necessário conferir aos litigantes aquinhoados com o ônus a possibilidade de
comprovar o que lhe está sendo atribuído sob pena de infração do contraditório.
Somente assim seria possível compatibilizá-lo com a necessária segurança
jurídica.
7. Não há de
se confundir a noção de ônus dinâmico da prova com a “doutrina do senso comum”,
utilizada frequentemente para caracterização de comportamentos culposos e que
opera no plano da valoração das provas (CPC, art. 131 e 335). Indica, diante de
circunstâncias comprovadas nos autos, que o julgador poderia concluir sobre o
fato, no plano do livre convencimento e conforme máximas de experiência mesmo
quando se trate de matéria técnica.
Tal doutrina tem sido invocada para atribuir culpa
pelos profissionais liberais. A culpa não é demonstrada por meios materiais,
mas apenas por inferências e raciocínios (assim como a boa ou má-fé),
dependendo de provas diretas ou indiretas. A respeito da culpa do profissional,
não é o bastante que se constate o posicionamento cientificamente minoritário,
apenas o uso de técnicas inaceitáveis. Sem embargo, determinadas circunstâncias
podem autorizar a comprovação de culpa ou outro fato: a culpa poderia ser
inferida da ocorrência de um dano inexplicável ou do tipo do qual normalmente
não ocorreria sem culpa (vg. médico que esquece instrumento dentro do paciente
incorre em negligência mesmo sem maiores provas).
Essa doutrina é
perigosa, na medida em que autoriza conclusões não necessariamente
identificadas, especialmente no âmbito da responsabilidade do médico.
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