segunda-feira, 16 de junho de 2008

Participação Individual e Representação de Interesses na moderna Tutela Processual

Dedicado à memória de Gilberto Guimarães, brother in arms.


Após meu último post, alguém poderá estranhar as idéias que proponho quando afirmo que a participação individual não é a única forma de legitimação das decisões da atuação judicial, havendo uma tendência para a objetivação das discussões dessa natureza. Ainda que seja apenas um esboço de pensamento, explicações são necessárias para justificá-lo em alguma medida.

Imperioso ter atenção para algo que poucas vezes é lembrado no estudo do processo judicial, que é sua indelével vinculação com ideais políticos. O direito processual não difere dos outros ramos jurídicos que constituem desdobramento da ideologia que conforma Estado e sociedade.

A combinação de ideais tradicionalmente liberais com aquilo que se concebe atualmente como democracia torna a participação do indivíduo é muito valorizada. Essa é uma concepção muito cara à filosofia política por vincular a legitimação do poder ao seu destinatário.

Nessa toada, a idéia de direitos individuais correspondeu a uma organização estatal, um Judiciário, uma tutela processual voltada esse paradigma jurídico identificado com a idéia de legitimação através participação dos interessados.

A ideologia estatal e as instituições constituídas há muito vêm sofrendo impacto do desenvolvimento da sociedade, sentindo a necessidade de serem reinventadas. Normalmente são aceitas na medida em que se amoldam à tradição liberal, que tem clara influência na constituição do Estado ocidental.

O reconhecimento dos direitos coletivos e difusos e das necessidades coletivas em face do direito individual apontam o caminho da reinvenção dessas instituições. O direito não mais se volta apenas aos indivíduos, mas também à coletividade, com a missão de promover ambos de forma igualmente eficaz.

Esse movimento histórico não mais representa qualquer novidade para o jurista, mas tampouco significa que se atingiu um nível ideal de maturidade para promoção desses direitos. A realidade que daí emerge reflete um trabalho crescente exploração dos limites teóricos e práticos do Estado, no sentido de buscar a configuração que melhor sirva aos novos objetivos incorporados.

É assim que são propostas novas formas de organização institucional, especialmente em relação ao Judiciário, pelas quais se lhe atribuem novos papéis.

Owen Fiss é um dos que propõem de maneira coerente essa reorganização institucional. Já a expusemos num post anterior (Presenting Owen Fiss, de 09 de dezembro de 2007), em que o autor propõe um Judiciário com missão de reforma estrutural do aparelho estatal.

Ainda que não se aceite a proposta de Fiss, é inegável que a Jurisdição sofreu transformações quanto aos assuntos que aborda e, assim, em sua forma de proceder. Ao se admitir que se pronuncie sobre questões de relevância para toda a sociedade, é imperativo que busque formas de legitimação compatíveis com seus atos, cada vez mais afastadas do esquema tradicional.

O processo judicial, nessa perspectiva, também sofre impactos, também depende de novas propostas para desempenhar com um mínimo de coerência e razoabilidade seu novo papel.

O problema da legitimidade das decisões judiciais em matéria coletiva é uma das principais questões que atingem o processo judicial: como pode uma decisão judicial gerar efeitos para todos quando há apenas a participação de alguns poucos no processo?

O texto abaixo trabalha especificamente essa questão, propondo a legitimação das decisões judiciais a partir da representação de interesses em juízo. Trata-se da idéia de contraditório em que se garante o day in court para todos os interesses envolvidos, sem que todos os interessados sejam ouvidos (segundo o autor, preservando o elemento essencial ao contraditório).

Nesse passo, essa postagem se relaciona com a anterior porque é essa noção de contraditório por representação de interesses que possibilitaria a objetivação das discussões judiciais.

Convido o leitor a prestar atenção nesse texto, observando a argumentação do autor em relação ao contraditório através da representação de interesses no sistema jurídico americano. Seria possível leitura similar para o direito brasileiro? Outra interessante questão é notar a relação entre representação de interesses e coisa julgada, na medida em que o autor critica a possibilidade de impugnação da decisão obtida via representação de interesses com base em critérios de legitimidade pela participação.

Gostaria de ouvi-los sobre esses assuntos. Considero indispensável a participação de todos.


A Sedução do Individualismo (Owen M. Fiss)

1. A reforma estrutural desenvolvida para conhecer de casos destinados à afirmação de direitos constitucionais, utilizava-se de injunction para se fazer efetiva e cumprir sua função de reestruturar organizações. Foi desenvolvida na era dos direitos civis para sua afirmação nos anos de 1950, apesar de ter sido utilizada em outros tipos de direitos com o desenvolvimento do modelo de adjudicação.

A partir de 1974, com a assunção do William Rehnquist à presidência da Suprema Corte, a reforma estrutural e a injuction correspondente sofreram diversos ataques passando a ser exceção enfraquecida.

O texto se refere a um dos mais contundentes ataques à reforma estrutural: o caso Martin v. Wilks[1]. Havia uma decisão proferida e executada para reestruturação de um departamento de bombeiros cuja política racial impedia o ingresso de negros. Após tal execução, a Suprema Corte autorizou o processamento de ação movida pelos bombeiros brancos, que não haviam participado do primeiro processo, para questionar a reestruturação a qual teria criado uma política discriminatória contra o grupo que representavam.

Esse precedente deixa todos os processos referentes à reforma estrutural passíveis de rediscussões e vulneráveis a ataques indiretos. Curioso é que a Corte não possibilitou essa mesma revisão em matéria criminal, ressaltando a importância do encerramento do processo e eficácia da decisão, os mesmos valores que não prestigiou para a reforma estrutural.

2. A importância da decisão é relacionar valor individual de acesso ao judiciário (day in court) aos valores que são objeto de consideração pelo processo de reforma estrutural. O cerne da questão é o direito de participação: será que é capaz de infirmar o projeto de reforma estrutural? Rehnquist entende que, embora reconheça o impacto negativo de sua decisão em perpetuar discussões, afirma ser obrigado a fazê-lo com base na disposição das leis americanas às quais estaria vinculado.

Embora a questão tenha encontrado novo cenário na Lei dos Direitos Civis de 1991, na qual se teria procurado alterar o resultado de Martin v. Wilks, Fiss entende importante opor-lhe argumentação constitucional para confrontar a questão em face do devido processo legal, pois o fundamento usado para analisar o caso identificaria no day in court uma profunda tradição histórica superior até mesmo à regulamentação legal.[2]

3. Se a forma de resolução do caso fosse feita através de acordo, o autor estaria disposto a aceitar a tese de Renhquist, porque a legitimação do acordo passa pelo consentimento de indivíduos ou grupos dispostos a ceder em face de uma situação de interesse próprio cujas variáveis é impossível medir. Assim, admitiria questionamento de quem não tivesse feito parte do acordo.

4. As considerações, entretanto, não se restringem ao acordo. Ao contrário, afirma que uma pessoa não pode ser privada de seus direitos subjetivos em razão de um processo do qual não foi parte. Os motivos seriam aplicáveis a qualquer caso julgado. Assim, ainda se a ação afirmativa tivesse sido julgada procedente em favor dos bombeiros negros com conseqüências específicas em relação à atuação do departamento de combate ao incêndio, privilegiando contratação e promoção de negros como compensação por anos de discriminação, mesmo assim, seria passível de questionamento por qualquer um que se julgasse prejudicado pela medida.

Mesmo que se considere que o caso estaria submetido ao stare decisis (vinculação pelo precedente), não estaria submetido ao collateral stoppel ou issue of preclusion (coisa julgada). Isso impediria a efetivação da medida e a deixaria sempre em aberto diante da multiplicidade de interessados num caso de reforma estrutual.

5. A argumentação de Rehnquist parece tentar minimizar a questão, pugnando por uma participação mais completa e cuidadosa, sem tecer considerações sobre a viabilidade disso e, assim, tapando o sol com a peneira. Nem o próprio consegue identificar quais seriam os participantes, pois ora se refere aos que poderiam ser afetados pela decisão de modo abrangente, ora aos privados em seus direitos subjetivos. Mesmo a interpretação restritiva seria absurda porque não parte da idéia de tutela dos interesses, mas sim da participação individual. Além disso, uma vez que a reforma estrutural e suas injunctions detêm caráter prospectivo, seria impossível prever quem deveria fazer parte desse litisconsórcio.

Fiss acredita que não há garantia de um direito a um dia na corte, mas o direito à representação adequada do interesse na corte. Nenhum indivíduo poderá ser obrigado por qualquer decisão judicial, a menos que seu interesse esteja adequadamente representado no processo. No processo de reforma estrutural, o que interessa é que todos os interesses estejam adequadamente representados, na falta do que estará aberto à nova impugnação. Contrapõe-se o direito de participação de Rehnquist ao direito de representação de Fiss.

6. Na proposta de Fiss, em face de um processo estrutural passado em julgado, seria possível impugná-lo em processos subseqüentes apenas no referente à representação. Isso poderia causar atrasos na efetivação, podendo ser evitado se a representação for criteriosamente avaliada no processo inicial o que seria quase impossível por ter de prever quais seriam os atingidos. Não se poderia fechar peremptoriamente processos posteriores. Essa dificuldade do regime de representação é que tem informado pensamentos que entendem a diferença entre um e outro ser meramente técnica. Mas isso não é verdadeiro. O ônus da tese de Fiss é incomparavelmente menor que a de Rehnquist.

7. A consideração tal como posta pelo professor Fiss teria impacto diretamente também em relação a outros institutos como a notificação, a qual não seria dirigida a todos os interessados, mas aos representantes dos grupos possivelmente interessados. O desenvolvimento do processo, aliás, pode dar ensejo a uma segunda rodada de notificações, especialmente no estágio da efetivação das medidas judiciais em que apareçam outros interessados. Ao contrário do precedente de Eisen v. Carlisle & Jacquelin, bastaria a notificação de boa quantidade de membros do mesmo grupo de interesses para que seja bem representado.

Outro instituto atingido seria a intervenção: apesar de poder causar multiplicidade de partes como o litisconsórcio, é mecanismo de participação diferente em 3 importantes aspectos: [a] o ônus desloca-se da ação para os impugnantes desde que a notificação seja adequada; [b] intervenção exigiria especial fundamentação e condicionada à demonstração que o interesse inscrito não está adequadamente representado, não havendo necessidade de permitir que todos participem; [c] a intervenção é destinada a melhorar a representação, o litisconsórcio é ambíguo quanto ao seu propósito e incontrolável por franquear indiscriminadamente a participação.

Ainda que a representação constitua a participação de um número grande de intervenções, e se assemelhe a uma convenção municipal no contexto de uma determinada ação, ainda assim, é mecanismo superior ao litisconsórcio que coloca sobre o autor o ônus incluí-lo.

8. O entendimento defendido por Fiss e incorporado na lei de 1991 não significa abandonar os direitos individuais, reafirmados em Roe v. Wade.[3]

Algumas formas de representação são inteiramente coerentes com valores individuais como no mandato, em que o mandante tem controle sobre o mandatário. Fuller afirma que a representação eleitoral também é adequada aos valores individuais, apesar do poder do eleitor depender de vários fatores.

A representação da reforma estrutural difere qualitativamente dessas outras: é representação de interesses que não envolve investidura. Apesar de parecer estranha a uma sociedade democrática baseada no consentimento, ocorre em diversas ocasiões sendo normalmente reconhecida: família, religião organizada, universidades, onde os representantes não são escolhidos. Assim também nos regimes comunistas cidadãos eram representados por grupos pequenos sem processo de escolha. No direito americano também se verifica isso no common trust[4] e nas class actions.

No caso das class actions, uma notificação é enviada aos membros de um grupo maneira a verificar a adequação da representação, pois a ação, que tem por objetivo proporcionar enforcements a leis públicas, vinculará todos os seus membros.

O precedente Eisen que obriga a notificação de todos os envolvidos não se aplica a todos os regimes da class action, referindo-se somente a tutela coletiva de direitos individuais FRCP, rule 23, (b) (3). Desta feita, não intenta contra a possibilidade de representação porque fundamentada na FRCP e não no devido processo legal.

9. Em todos esses exemplos sociais, políticos ou jurídicos, identifica-se a representação de interesses com o propósito de alcançar valorosos objetivos pragmáticos. Permite-se a representação de interesses para tornar a reforma estrutural e sua injunction viável. O compromisso com valores individuais não pode ser tamanho que inviabilize uma tutela necessária à atualidade. A importância da participação do indivíduo é inegável mas tem de ser identificada nos diferentes contextos.

Em casos como de direito penal a participação individual torna-se essencial como valor supremo diante da particularidade da situação, compromisso com a dignidade individual e valorização da fiscalização instrumental.

No litígio estrutural, por outro lado, indivíduos não são singularizados; as medidas são orientadas para o futuro; organização é examinada a partir do impacto que desempenha sobre o bem-estar social de um grupo. Assim o valor participação resta diminuído nesse tipo de processo. Em verdade, serve mais a fins instrumentais que para preservar a dignidade, pois a finalidade é assegurar tutela de interesses e que argumentos fortes sejam sempre formulados.

10. Por fim, Fiss vislumbra a possibilidade de se apresentar o seguinte argumento sobre o direito de participação: essa seria parte da esfera inalienável de direitos individuais que não podem ser subjugados em hipótese alguma nem para beneficiar a sociedade inteira.

Entretanto, o devido processo legal é princípio que compreende tanto a situação individual quanto a situação coletiva. Não pode ser reduzido a uma concepção de individualismo que desconsidere as conseqüências sociais da regra procedimental, buscando acomodar direitos tanto dos bombeiros negros, quanto dos bombeiros brancos.

Não há uma ponderação com o princípio do devido processo legal que o desvincule dos direitos civis, mas uma concepção que compreenda sua dimensão democrática necessária.

[1] 490 US 755 (1989)
[2] O precedente citado é Chase National Bank v. Norwalk.
[3] 410 US 113 (1973). Precedente que substitui Brown como referência de organização central do direito americano.
[4] Caso Mullane v. Central Hannover Bank & Trust Co. 339 US 306 (1950). Trust é instituto americano no qual algúem (trustee) é formalmente investido na propriedade de um ou vários bens exercendo o direito em benefício de uma ou várias pessoas indicadas pelo instituidor. Common trust é a modalidade coletiva dessa figura. Caso descrito no livro da p. 223 a 226.