quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Günther Teubner: Policontexturalidade e Direito



1. O autor parte de uma pressuposição que merece ser aceita: há um movimento quase irresistível transferências de importantes tarefas antes entregues a intervenção estatal, ao domínio privado. As circunstâncias praticamente obrigam que todos se adéqüem ao cenário mundial, sob pena de obstar a própria inclusão na nova economia com graves conseqüências sociais.
Diante dessa situação, é comum se exortar a necessidade dos mecanismos de mercado atuar sobre aspectos do bem comum, substituindo o setor público (antes tutelados pelo Estado de direito, direitos fundamentais, princípios de direito público e pela legitimidade democrática), ou incorporando seus princípios e elementos.
O autor questiona essas assertivas, dizendo-as indevidamente reduzidas em sua complexidade pela dicotomia público-privado. Daí porque propõe alternativa a essa compreensão:
[a] A análise deve escapar à dicotomia do direito público vs direito privado, apresentando a esse último o desafio de considerar pluralidade de autonomias privadas distintas.
[b] Diante do novo quadro social, não se deve impor ao direito privado os padrões do direito público, mas transformá-lo num direito constitucional dos subsistemas caracterizados por regimes autônomos.

2. Tanto as ciências sociais quanto o direito vêem como indevida as relações entre Estado e sociedade serem reduzidas à dicotomia público-privado. Entretanto, não tem substituído tal mecanismo de análise, subsistindo como instrumento de compreensão.
A dicotomia não é recente e tem o mérito de sobreviver à diversos diferentes tipos de estruturação social. Existiu para opor polis e oikos na sociedade antiga, Estado e sociedade na sociedade moderna, hoje como setores público e privado. Atualmente, adotam conteúdo específico, opondo de um lado a racionalidade política e sua organização hierárquica (público) vs racionalidade econômica, sua coordenação de mercado flexível e eficiente (privado).
O autor sugere o abandono dessa distinção por ser simplificação grosseira da estrutura social e da idéia de fusão das características de cada lado da dicotomia. Ao invés disso, a partir da teoria dos sistemas, propõe a compreensão da sociedade pela noção de policontexturalidade.
Essa proposta parte da grande complexidade que a sociedade assume, exigindo multiplicidade de perspectivas para sua descrição. Entre o Estado e a sociedade há uma pluralidade de setores sociais que tem de ser considerados, refletindo na compreensão e estruturação do direito. Há diversos setores da atual diferenciação social que não encontram explicação nem na racionalidade política, nem na racionalidade econômica (ex. nem a pesquisa, nem a relação médico-paciente podem ser explicadas exclusivamente pela dicotomia).

3. Emerge do paradigma proposto que o direito privado deve ser entendido principalmente por sua afinidade com a atual pluralidade de discursos, diante de sua proximidade com os mais diversos setores autônomos da sociedade civil (relações privadas, sistema de saúde, educação, ciência, meios de comunicação, arte, religião, etc). Nesse contexto, o direito privado teria a tarefa de refletir a lógica interna desses setores e acoplá-la com o regulamento dos demais subsistemas. Assim teria distanciamento da lógica econômica e da política, passando a refletir a importância da racionalidade específica para cada subsistema social.
Há uma tentativa de desvincular o direito privado da noção de juridificação da esfera econômica. Historicamente essa tendência confirmou-se na medida em que o direito contratual tornou-se referente quase que exclusivamente das transações de mercado, a regulamentação das associações restringia-se às corporações empresariais, propriedade destinava-se a fundamentar disposição econômica, etc. Isso dificilmente poderia ter sido impedido ante a colonização dos sistemas sociais pela economia ou pela política no século XX, tendo o direito privado seguido as tendências de alargamento e encolhimento conforme a expansão dos campos econômico ou político (respectivamente sociedade de direito privado, orientado pela eficiência econômica; ou direito privado como direito econômico, orientado pela política econômica do Estado).
No novo paradigma, identificar-se-ia o direito privado em muitos âmbitos sociais onde há criações normativas espontâneas atuando como fonte de imposições normativas jurídicas, como faz prova a crescente quantidade de contratos privados.
A dogmática tradicional realçou corretamente a autonomia privada (auto-regulamentação) como cerne do direito privado. Mas em seu ímpeto a unidade dogmática não atentou para o pluralismo atual, expresso na multiplicação discursiva das autonomias privadas de uma sociedade complexa e diferenciada.
A tarefa central de um direito privado socialmente orientado seria repensar a única dimensão da autonomia privada, expressa no indivíduo livre, para conceber autonomia de diversos mundos sociais, servindo de instrumento para disponibilizar formas de ação adequadas entre cada uma das esferas autônomas (relações privadas, sistema de saúde, educação, ciência, meios de comunicação, arte, religião, etc). Assim, seu cerne é a juridificação de processos de construção normativa espontâneos e plurais na sociedade, distintos do processo de regulamentação política do Estado.

4. Ocorre que as características que o direito privado deve assumir são fonte de controvérsia (identificação com quais fragmentos sociais, forma de delimitação dos seguimentos, definição de suas racionalidades específicas, espécie de normatividade interna desenvolvida por cada uma, relacionamento possível com instituições político-jurídicas, definição e concepção relacionada à essa pluralidade).
Considerando esse debate e a ligação do direito privado com a produção normativa espontânea, uma de suas tarefas é reformular a autonomia privada clássica levando em conta a auto-regulamentação específica de setores sociais.
A principal conseqüência da pluralidade das autonomias privadas é de caráter normativo, cujo desafio é institucionalizar o equilíbrio entre autonomia e intervenção. Talvez o regime de autonomia do sistema econômico seja um bom exemplo de coordenação desses fatores para os outros âmbitos de autonomia da sociedade civil. Outro desafio é a garantia de respeito a essas esferas de regulamentação privada, a qual deve ser buscada não somente na organização interna, mas também nos apoios externos de outros sistemas.

5. Analisando as privatizações da policontexturalidade (não da dicotomia) passa-se a considerar as diversas autonomias privadas de criações normativas espontâneas e seu funcionamento. Privatização significaria alterar a autonomia de esferas sociais parciais por meio de substituição de mecanismos de acoplamento estrutural com outros sistemas sociais de forma a preservar princípios de racionalidade e normatividade que os caracterizam.
Sob essa ótica, a privatização divide duas formas distintas de organização social: [a] antes da privatização, quando os setores sociais eram colonizados pela racionalidade política causando bloqueio das energias sociais (1º. Mismatch); [b] após a privatização, quando a sociedade liberada dos entraves políticos acaba sofrendo colonização pela racionalidade econômica e sua lógica de mercado (2º. Mismatch).
5.1 [1º. Mismatch] Setores sociais autônomos estavam submetidos ao regime público. Isso não significa que suas lógicas e padrões racionais estavam encobertos pela política (talvez tenha ocorrido em regimes fascistas). No sistema liberal-capitalista, houve tentativa do Estado Social de ampliar o setor público em face da sociedade civil, mas sem destruir as autonomias sociais, manobrando-a através de estreito acoplamento dessas ao sistema político-administrativo.
Assim, a política era fonte principal das irritações internas a cada setor. No seio do próprio Estado Social já se notou que para alguns setores periféricos à análise política a emancipação era possível com repercussões claras na própria dogmática administrativa.
O problema perene dessa organização era o desequilíbrio estrutural entre atividades sociais e seus regimes político-administrativos. A crítica econômica foi eficiente em constatar que a direção política não se adequava a lógicas próprias das ações sociais, fazendo-o com custo de transação insustentável.
Foram os custos gerados pela influencia política na integridade dos serviços públicos que representaram fortes motivos para a privatização. Fazia-se dos setores autônomos sensíveis à política, mas indiferente ou menos atento às demais racionalidades. Assim a privatização significou a liberação de energias sociais.
Aqui não se pode esquecer a improdutividade de uma economia colonizada pelo Estado em viabilizar a introdução das sociedades no paradigma do informacionalismo, o que somente pode ser feito na medida em que se possibilita um amplo espaço de movimentação que a racionalidade política não é capaz de acompanhar.
5.2 [2º. Mismatch] Após a privatização e a liberação das dinâmicas sociais autônomas dos acoplamentos com a política e burocracia, emergiu outra condição dominante em relação aos acoplamentos: o domínio econômico, através do qual o mercado passa a centralizar os contratos entre sistemas autônomos (passam a ser empresas que respeitam o princípio do lucro e estão sujeitos à concorrência econômica).
Apesar de criar maior espaço para as dinâmicas sociais, o Mismatch econômico aparece em longo prazo ao alijar gradualmente as atividades incapazes de sobreviver economicamente, suscitando resistências sociais internas da cada setor e reações político-jurídicas a esse desequilíbrio.
A maioria das formas de Estado Regulador (atua por regulamentação – e não intervenção – econômica e social) não aborda a policontexturalidade, mas a dicotomia, na medida em que presumem centralização política. Tampouco as políticas alocativas e distributivas abordam o paradigma proposto. Constituem meras reformulações da dicotomia sob novos instrumentos.
O autor propõe que em lugar disso, os critérios de regulamentação devem se desenvolver espontaneamente nas diversas esferas de legalidade. As controvérsias internas e os conflitos externos devem se distribuir entre a pluralidade de sistemas sociais em reflexão descentralizada em oposição à reflexão exclusiva do político. É nisso que o direito privado pode contribuir (no nível material e processual) em viabilizar a consideração da racionalidade específica e possibilitar o processo de reflexão onde se formulam novos critérios para o conflito entre atividades sociais e regime econômico.

6. Há diferentes desequilíbrios entre setores sociais e regime econômico considerando o setor em questão, o que impede que se estabeleçam regras gerais de acomodação. Mas é possível explicitar problemas típicos das formas de acoplamento que apresentam. Trata-se de descobrir o campo de problema em que a lógica de mercado colide com princípios fundamentais dos sistemas sociais em questão. Na seqüência são destacados alguns desses problemas.
6.1 Corrupção Estrutural: Observe-se o caso dos Pink Students, filhos de grandes acadêmicos (sem o mesmo talento) que recebem generosos financiamentos para desenvolverem suas pesquisas em universidades privadas, chegando a ocupar 15% das vagas disponíveis.
Mesmo não havendo proibitivos ao patriotismo acadêmico, corrompe-se estruturalmente o padrão científico-pedagógico o princípio do desempenho e seus conceitos de igualdade de admissão e oportunidades em função das vantagens que pode gerar a instituição.
Os tribunais europeus não querem intervir nas políticas de instituições privadas sob o argumento de... serem privadas.
A não intervenção é uma conseqüência bizarra da perspectiva da dicotomia já que setores sociais como a educação não se encaixam a ela. O novo direito privado deve compreender a diversidade de racionalidades e acomodá-las.
Casos semelhantes: Meios de comunicação (perspectiva da dicotomia autoriza a percepção dos meios de informação como instituições privadas onde o lucro ameaça a integridade jornalística); Caso da vaca-louca (houve demissões de cientistas de repartições públicas por não se concordar com suas conclusões; financiamentos de projetos científicos financiados por lobbies; política como óbice ao fomento da pesquisa científica).
Apesar dessas colisões entre racionalidades e novas tentativas de colonização, é encorajador o fato da moral pública respaldar o fortalecimento das autonomias sociais que pode ser feita pelo direito privado.
A ética da economia ensina que se deve respeitar a integridade dos sistemas autônomos.
A teoria dos sistemas (policontexturalidade) não recomenda a colonização desses sistemas autônomos.
A compreensão dessas fronteiras combina com o direito privado: criar muralhas entre esferas de ação, coibir combinações incompatíveis de papeis, abrir espaços decisórios autônomos são soluções que podem ter êxito no combate a corrupção estrutural.
6.2 Exclusão Social: A privatização trouxe em alguns setores a exclusão de diversos indivíduos. Pobres, deficientes desabrigados são discriminados e privados de acesso em alguns setores. Os membros da sociedade somente tem acesso a suas atividades conforme condições próprias do sistema, mas as condições de acesso universal encontram-se em conflito. O novo regime (que repousa na rationale econômica) discrimina pelo poder de compra, criando poderoso Mismatch.
A reação jurídica é impor normas de acesso necessárias a cada setor, conforme suas realidades próprias. Exemplo disso é o regime de telecomunicações da UE: determina mínimo de prestação de serviços de qualidade específica para todos os usuários a preço acessível, sob princípios de generalidade, igualdade e continuidade. É nesses casos que o direito privado tem a missão de compatibilizar lógicas de ação contraditórias, impondo normas específicas às transações econômicas.
Já havia meios antigos de fazer isso considerando a dicotomia como o controle judicial das condições do contrato. Na policontexturalidade, verificam-se novas opções tais como da divisão adequada de subvenções cruzadas para atividades não lucrativas entre concorrentes, administrações não orientadas para o lucro, imposição de padrões sócio-culturais a empresas, etc.
6.3 Contratualização e Externalidades: Ante a perspectiva da dicotomia, entende-se que a privatização submeteu serviços públicos a regimes tradicionalmente privados em prejuízo da complexidade social evidente. Assim, operações complexas, formadas por diversos vínculos contratuais, seriam tomadas isoladamente conforme o histórico direito de obrigações identificado com a rationale econômica.
Pela compreensão da policontexturalidade, isso seria uma distorção das relações sociais pela consideração econômica. Cria-se problema de difícil resolução porque além das partes do contrato podem estar envolvidos interesses de terceiros. Daí porque essa consideração deve introduzir princípio de relatividade nas obrigações multilaterais, o que deve ser intensificado enquanto que o purismo dogmático entende acontecimentos sociais em partes independentes, não relacionadas. Assim, aumenta a pressão sobre a dogmática do direito privado para que aceite a complexidade.
6.4 Fronteiras da Monetarização: Até onde se pode permitir a atribuição de valores econômicos a todo tipo de bem? Lutero se voltou contra isso na Reforma. Agora a questão aparece novamente, em especial no âmbito da bioética (clonagens de seres humanos, por exemplo).
6.5 Dumbing Down: Instituições reconhecidas por suas qualidades na arte, cultura, comunicação e educação perdem espaço para concorrência em níveis estritos de mercado por estarem diretamente expostas a sua lógica. A policontexturalidade entende que devem ser erigidos critérios que reflitam a racionalidade interna do setor através do direito privado, instituindo direito a diversidade.
6.6 Seletividade Perversa: Não se faz atenção às reais distinções de desempenho quanto a racionalidade de cada setor.

7. Após a privatização, como se desenvolverá o direito privado? Como lidará com os Mismatches entre atividade e regime?
A resposta depende dos rumos do processo de privatização, sendo necessário vislumbrar alternativas. O autor imagina dois cenários distintos: fragmentação ou hibridização do direito privado.
A sociologia distingue entre acoplamentos frouxos ou firmes entre os sistemas sociais. Na conjuntura atual posterior a privatização, o direito privado vai responder conforme se mostrem frouxos ou firmes os acoplamentos entre autonomias sociais e processos econômicos.
De um lado, pode se fragmentar, como resposta a frouxidão dos acoplamentos entre sociedade e economia (com maior autonomia à sociedade); de outro, pode se hibridizar, respondendo a um acoplamento firme de tudo à economia. Em ambos os casos se frustra a esperança de unificação do direito privado em torno do regime de mercado.
7.1 Fragmentação: A fragmentação depende diretamente da força que os setores sociais independentes da economia e da política serão capazes de exercer daqui para frente.
A autonomia privada depende diretamente de um sistema social revela-se na existência de um maquinário de produção normativa (mecanismos de consenso, organizações formais, padronização) desempenhando um papel de fonte independente do direito.
O autor é otimista quanto a possibilidade dos setores sociais atingirem bom grau dessa autonomia, como ocorre, por exemplo, com o direito de família: a sociedade encurrala o Estado sobre as possibilidades de auto-organização, ganhando espaço para sua própria racionalidade no seu interior, fazendo com que o direito de família reaja quase exclusivamente à racionalidade da vida privada e sua criação normativa espontânea.
É possível conceber direito dos Regimes Privados que considere a poliarquia deliberativa, instituindo sistemas de resolução de problemas. Assim se vislumbra, por exemplo, que as instituições universitárias privadas sejam submetidas ao escrutínio da racionalidade do sistema do qual faz parte, de maneira a acabar com a política de proteção aos pink students e regerem-se pelos princípios pedagógicos.
Por fim, não é só do acoplamento frouxo que depende uma realidade fragmentada, mas também da capacidade do direito como tecnologia suportar as oportunidades estruturais de emancipação na contemporaneidade. É assim que direito contratual, societário, direito real, todos tem de apresentar formas jurídicas suficientemente elaboradas para oferecer ao terceiro setor a oportunidade de institucionalizar suas racionalidades autônomas. A fronteira é o terceiro setor.
7.2 Hibridização: Ocorreria em situação na qual os sistemas sociais fossem fortemente acoplados à economia, comercializando completamente seus padrões de racionalidade em lógica de mercado, fazendo com que os conflitos sejam percebidos como operações de cálculo econômico (custo-benefício, eficiência alocativa, custo de transação). Isso significa uma perspectiva dos conflitos sociais filtrada (para não dizer falseada) pela racionalidade econômica.
O direito privado teria nesse cenário a função de reorganizar o acoplamento estrutural dos setores sociais à sua racionalidade não econômica, ao compreendê-los por sua natureza híbrida. Tal natureza híbrida não reflete o sentido tradicional de público-privado (restrição às racionalidades política e econômica), mas no sentido policontextural de que integram ao mesmo tempo sistema econômico e social no qual desempenham funções.
O direito privado deve funcionar de modo a quebrar o acoplamento de cada setor com a economia (dotado de self-enforcing) e fortalecer os aspectos sociais relacionados, buscando normatização para além das regras de mercado noutros processos paralelos e contraditórios a ela.
Teubner tem uma tese em relação ao direito contratual, ao sustentar que passa a se fundar em dois mecanismos de regulação: [a] transação economia; [b] acordo produtivo no setor social. A reconstrução do contrato seria mais que uma transação econômica que cria expectativas nas partes, mas passaria a ser considerado projeto produtivo num dos mundos sociais. Aqui, não se fala mais de conteúdo jurídico dispositivo, porque não basta a compensação de interesses das partes. Interessa a justiça discursiva, em que as formas contratuais são feitas para satisfazer a normatividade interna do sistema social.
Com isso, há alteração dos processos de criação normativa do direito privado (irritação por acontecimentos externos; simulação de processos sociais). As irritações não serão exclusivamente captadas no mercado, mas pelas necessidades da reconstrução jurídica quando do restabelecimento do padrão social. A simulação não poderia mais ser apenas teste de mercado, mas um teste discursivo com objetivo de identificar padrão concreto da realização de processo micropolítico numa das muitas esferas de justiça.
Assim o papel do direito privado seria defender as esferas de autonomia social da influência totalizante da economia.
Nem mesmo as teorias de mixed economies poderiam satisfazer os requisitos aqui colocados ao direito privado. Nessas teorias, o objetivo é corrigir falhas de mercado por meio da intervenção política consubstanciada em normas de contenção (como o direito do consumidor). Isso é muito diferente do proposto: [a] não há correção posterior de transações econômicas, mas sim um contrato constituído de duas dinâmicas sociais equivalentes mais o objetivo de conciliação de colisões discursivas. [b] aspectos não econômicos não serão mais filtrados pelo processo político para se transformarem em direito, mas reagindo diretamente a produção normativa espontânea.
7.3 Reimportação de conflitos como reação à privatização: Uma outra conseqüência da privatização é o retorno de conflitos tidos como superados em tempos anteriores por outras formas de estruturação social (acopladas fortemente ao juízo político do Estado Social, por exemplo). Além das novas tensões, antigas também são identificadas. O direito privado tem de preparar suas estruturas dogmáticas para essa realidade sob a prespectiva da justiça discursiva policontextural.


Referência: TEUBNER, Günther. Após a privatização: conflitos de discursos no direito privado contante da obra Direito, Sistema e Policontexturalidade. Piracicaba: Unimep, 2005, p. 233-268

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Norberto Bobbio e sua Análise Funcional do Direito


1. A trajetória acadêmica de Norberto Bobbio é um dos pilares sobre os quais é edificada a história do pensamento jurídico italiano no século XX. Dedicou-se intensamente ao estudo do direito, tendo feito coro ao positivismo jurídico de Hans Kelsen. Travou vários debates nas décadas subseqüentes ao pós-guerra, defendendo a concepção kelseniana contra o jusnaturalismo, que havia voltado à moda como reação às críticas dirigidas ao uso da doutrina do direito positivo pelos Estados totalitários.
O pensamento jurídico de Bobbio é marcado por duas distintas, mas complementares, fases de produção sobre o positivismo jurídico na Itália.
Na primeira fase, o autor tinha como tema fundamental a definição científica do direito, definindo seus lindes metodológicos equiparados às ciências naturais. Ao seu modo, identifica na pirâmide kelseniana a consideração do direito não como uma microteoria da norma como objeto singular e autônomo, mas para uma macroteoria que consiste em considerar um complexo de normas constitutivo da ordem jurídica e das relações entre elas.[1]
Em 1968, Bobbio abandonou a cátedra de teoria do direito para dedicar-se à ciência política em Turim, onde desenvolveu trabalhos de semelhante estatura. Jamais, entretanto, deixou de publicar sobre o direito que continuou a estar dentre suas principais preocupações. É esse fato que marca reviravolta considerável do pensamento jurídico do autor, que passa a reconhecer explicitamente os limites do modelo epistemológico herdado do movimento formalista do direito.
Já posteriormente ao advento da nova cátedra, Bobbio publicou obra onde constavam ensaios diversos em que mudava sua linha de raciocínio sobre o direito, desenvolvida ao longo de muitas décadas. A questão normativa, estrutural, do objeto do direito não mais estava dentre suas preocupações, mas sim seu caráter funcional pelo qual visava responder a pergunta: para que serve o direito?
Naturalmente, diversas fronteiras se abririam ao pensamento jurídico a partir dessa reflexão, mesmo porque tal alternativa, segundo Bobbio, não excluiria tudo aquilo que ele mesmo já havia produzido ao tomar o direito como norma. Apenas seria acrescentada uma dimensão teleológica à reflexão jurídica a qual garantiria uma decisiva abertura das normas ao mundo dos fatos, à organização social.
O ponto central que motiva as reflexões de Bobbio sobre tal função teleológica é o advento do Estado Social e atribuição de novo papel ao direito, a saber, seus atributos promocionais. Com isso, o direito não mais se restringe a sua função repressiva, passando a incentivar e dirigir os comportamentos sociais em direção ao ideal social que propaga. A motivação do autor nesse particular é dobrada quando comparado com suas reflexões políticas, que têm como objetivo conciliar os postulados liberais (princípios de liberdade) com aqueles da tradição socialista (princípios de igualdade).
Diante da ausência de reflexões sobre tal dimensão do direito dentre as preocupações formalistas, a sociologia do direito passa a desempenhar papel fundamental no estudo jurídico.

2. A contradição histórica entre abordagem formalista e sociológica é muito anterior a verificada nesse autor, tendo sido definida pelo embate das fontes do direito (respectivamente monistas e pluralistas). Na época, os chamados estadistas (predecessores do formalismo) identificavam o direito com a norma, os sociólogos do direito viam esse objeto produzido diretamente pela sociedade.[2]
Posteriormente, não era exatamente o problema das fontes do direito que passavam a ocupar as teorias sociológicas do direito (até porque no meio jurídico já estaria sedimentado a proposta do direito formal, estatal), mas sim suas funções. Diante da transformação para o Estado Social, qual o impacto que o direito sofreria em seus objetivos, dada sua natureza de subsistema da sociedade contemporânea. Isso explicaria o rápido desenvolvimento da teoria funcionalista do direito.
O interesse na função social do direito também cresceu à vista das teorias marxistas que acrescentou à sua definição de ordenamento coativo, sua função de perpetuar o domínio de classes.
Esse foi um espaço vago que deixou a teoria de Kelsen. Diante do seu rigor científico na definição do objeto do direito na norma jurídica, a definição oferecida parou no conceito de ordenamento coativo. A função oferecida para o direito nessa perspectiva seria a paz, a ordem e a segurança coletiva nas relações internacionais. Mas não havia definição que qualquer conteúdo específico, sendo apenas um instrumento para as mais diversas funções. Seria apenas o modo pelo qual os fins, sejam quais forem, sejam alcançados. Acreditava-se ser o elemento característico da teoria do direito na estrutura do ordenamento jurídico como sistema dinâmico, sem a necessidade de objetivo para sua definição.
Bobbio relaciona essa falta de conteúdo com teorias do Estado que jamais admitiram sua finalidade, limitando-se apenas a descrever seus elementos constitutivos. Na verdade, trata-se de relação passível de ser feita com o paradigma do poder legal-racional, pelo qual se induzia a concentrar atenção dos processos de organização nos instrumentos que nos problemas de ordem axiológica e sociológica, tal como sugerido por Weber.[3]
Diante da ausência de um fim específico propunha o direito como mero instrumento, cuja apropriação estaria ao alcance de qualquer ideologia.

3. A análise funcional do direito depende do questionamento de determinados pressupostos de estudo da matéria.

a) Uma das características das sociedades tecnocráticas seria a progressiva perda de função repressiva do direito (processo de desjuridificação). Duas são as linhas de argumentação importantes nesse sentido:
[i] integração social através da ampliação dos meios de comunicação em massa (condicionamento do comportamento coletivo): isso passa pela socialização (adesão a valores estabelecidos e comuns) e imposição de comportamentos considerados relevantes para a unidade social (repressão dos comportamentos desviantes). São relacionados aos meios institucionalizados de poder: ideológico e político. Na medida em que o consenso, mesmo manipulado, avança, diminui a necessidade da repressão jurídica.
[ii] aumento dos meios de prevenção social: o desenvolvimento da prevenção no direito como na medicina tenderia a impedir o número de conflitos a partir de uma auto-regulação social. Nesse caso, o direito subsistiria na forma de normas de organização dos meios sociais que substituiriam a repressão. Com isso, entra em declínio a tradição que entende ser o estado de natureza, como situação sem direito, equivalente a destruição dos homens. Impede a noção de progressividade da história no sentido de que quanto mais presente o Estado ou o direito, mais evoluída seria a sociedade examinada.

b) O funcionalismo é teoria que se propõe a entender o sistema social tal como um organismo considerado como um todo. Parece que tal tipo de análise não concebe instituições sem uma função positiva. No máximo, concebe o funcionamento defeituoso (disfunções) que poderiam ser corrigidas. A função negativa exigiria a transformação do sistema.
O direito, como uma das partes do sistema social considerada em função do todo, detém uma função positiva primária já que é instrumento de conservação por excelência. É o subsistema do qual depende em última instância a integração do sistema, para além do qual há inevitável desagregação do sistema.
Do ponto de vista da mudança do sistema, o direito também ocupa lugar de destaque mudando a ordem vigente e adaptando-a as mudanças sociais (prova disso é a possibilidade leis atualizadas substituírem defasadas). Bobbio sugere que esse papel pode ser desempenhado pelo direito por ter também uma função negativa que atua tanto quando o direito se adianta à mudança social, quanto no caso em que tutela um conflito posteriormente a sua verificação.

c) Qual ou quais as funções do direito? Não é nova a análise que postula para o direito uma função distributiva, conferindo a membros do grupo social recursos econômicos e não-econômicos. Relaciona-se o exemplo do historiador do direito James Williard Hurst, de origem americana. Tal autor já destacava em sua obra o estímulo e apoio que o direito pode conferir, alem da possibilidade de alocar recursos.[4] Na verdade identifica que qualquer grupo social é, além de prevenir conflitos e resolvê-los, distribuir recursos disponíveis.
Tais funções identificadas ganham papel ainda mais proeminente no Estado Social. Essa função do direito não foi tradicionalmente reconhecida diante do peso fortíssimo exercido na cultura ocidental em que o Estado e o direito restringir-se-iam a um papel mínimo ante a esperança de auto-regulação da economia e da sociedade. O direito teria o papel de facilitar o estabelecimento das relações privadas, garantir sua continuidade e segurança e impedir a dominação recíproca.
Prova dessa longa tradição jurídica é a permanente relação que se faz entre direito e moral (nunca à economia), pois ambas teriam função de garantir a estabilidade e a segurança das relações inter-individuais. Mesmo definições doutrinárias modernas destacam apenas esse caráter protetivo-repressivo (conjunto de regras de conduta individual, resolução de conflitos, reparação de erros e repressão de atos desviantes).

d) Enquanto a função repressiva do direito repousa sobre a ameaça de sanção, a função promocional atinge seus desígnios mediante premiações. Jhering já concebia essas formas de ordenação social como recompensas e penas, mas identificava a primeira como privativa da economia e a segunda da esfera jurídica. A técnica jurídica de cumprimento faria toda a diferença na caracterização das funções do direito.

4. Tal análise do direito está totalmente desvinculada dos estudos e preocupações que regeram o estudo do direito até então e impediram que essa perspectiva se desenvolvesse de maneira a entender suas transformações oriundas da sociedade.
É assim que a sociologia do direito passa a desempenhar papel decisivo, pois: [i] são problemas que requerem a consideração do direito no todo social (como subsistema de um sistema), requerendo o estudo das relações entre direito e sociedade, que permitem perceber e avaliar as transformações do direito; [ii] além disso, para avaliar as transformações de função do direito é preciso recorrer a técnicas de pesquisa empírica próprias das ciências sociais.
É necessário, entretanto, explicitar algumas dificuldades de ordem teórica para esse tipo de abordagem, especialmente com o esclarecimento de seus conceitos, no intuito de eliminar confusões terminológicas. A expressão “função do direito” apresenta em si diversas dificuldades.

[a] A palavra função dentro dos limites nas teorias sociais poderia ser entendida em relação à [i] sociedade como totalidade, como sistema de equilíbrio; ou em relação aos [ii] indivíduos que são partes componentes dessa totalidade, que interagem entre si e com o todo. É lícito combinar as proposições, mas não ignorar sua existência.
Quem afirma que a função do direito é a integração social, aborda o problema da função do direito do ponto de vista da sociedade no seu conjunto; se se aborda a questão aduzindo que a função do direito é tornar possível a satisfação de algumas necessidades fundamentais do homem, identifica-se o ponto de vista do indivíduo.
Tais abordagens na verdade traduzem uma concepção de sociedade, valores e indivíduos e tendem a prestigiar o núcleo central de cada concepção.
Ocorre que as funções enumeradas nem sempre representam o mesmo grau de influência nas sociedades analisadas. Há diversidade de fins específicos identificados pelo direito que variam conforme as contingências. Trata-se de lógica idêntica àquela da relação meio-fim (o fim, uma vez alcançado torna-se meio para realização de outro fim). Assim resta difícil encontrar critério para uma finalidade ontológica. Bobbio recorre à divisão entre ser e dever-ser para separar as perquirições de sociólogos e antropólogos (funções específicas) e do filósofo (função ontológica).

[b] Na expressão identificada, também o termo direito apresenta recomendações para seu correto entendimento. [i] Nem todos que se dispõem a fazer uma análise funcional entendem direito da mesma forma; [ii] mesmo que houvesse consenso quanto ao direito referido, seria muito difícil que uma única versão do conceito pudesse ser aproveitada para todas as possibilidades de abordagem.
[i] Prova da diversidade das acepções de direito são os atributos que lhes são conferidos pelos defensores da análise funcional. São relacionadas as funções repressiva em contraposição a distributiva, e ao mesmo tempo a contradição entre função de conservação (estabilização) e inovação. Tais atributos são legítimos mas sem qualquer correspondência entre si. Devem ser explicados por significado diverso do substantivo ao qual se referem.
A primeira distinção (repressão x distribuição) se refere aos remédios empregados pelo direito para exercer sua função primária de condicionar o comportamento do grupo social. A segunda (conservação x inovação) se refere aos resultados obtidos, considerada a sociedade em seu todo. A primeira observa como o direito opera. A segunda observa aquilo que as regras prescrevem ou permitem, bem como sua eficácia. Para analisar o primeiro é preciso tomar em conta o remédio. Para analisar o segundo necessário consideraras providências concretas impostas ou solicitadas.
Assim, o problema da função do direito abre caminho para duas respostas diferentes, considerados os diferentes critérios de abordagem.
[ii] O direito é tão vasto que uma análise funcional que não proceda às devidas distinções se torna de escassa utilidade. Há várias possíveis e o texto ocupa-se de três que reputa emblemáticas: direito privado/direito público; normas de conduta/normas de organização; normas primárias/normas secundárias.
A primeira distinção (privado x público) é necessária a medida que desenvolvem diferentes funções no interior do sistema jurídico, distinguindo as duas principais funções atribuídas ao ordenamento jurídico (permitir a coexistência de indivíduos por regras de equalização e solução de conflitos; ou função de direcionar interesses divergentes identificando objetivos comuns).
Outras análises, segundo Bobbio, são possíveis e devem seu nascimento (ainda que inconsciente) à análise funcional porque recorrem aos objetivos das normas para defini-las e não outros modelos como raciocínio e conteúdo.
É tradicional a referência a normas de conduta, para regulamentar a convivência entre indivíduos de modo a possibilitar que cada um busque seus próprios fins. Normas de organização buscam tornar possível a cooperação entre indivíduos para atingirem fins comuns.
No caso das normas primárias e secundárias é notório que H. L. A. Hart recorre a critérios funcionais para diferenciá-las e desmembrar as espécies de normas secundárias (normas de reconhecimento, mudança e juízo). Explica a estrutura partindo da função.

5. Essas são algumas das armadilhas enfrentadas por aqueles que se propõem a estudar a análise funcional do direito, buscando na especificidade da função do direito seu elemento característico. As tentativas nesse sentido, segundo Bobbio, ou não logram êxito em apresentar conclusões, ou simplificam indevidamente o fenômeno (acusação que faz à Luhmann com sua proposta de atribuir ao direito o papel exclusivo de estabilização das expectativas sociais). Esse mesmo fenômeno ocorreu com as demais teorias que ou se revelavam demasiado específicas ou demasiado genéricas. Ao final, Bobbio pugna pelo avanço de ambas as formas de análise que, se não são passíveis de serem integralmente combinadas podem andar lado a lado sem que uma obscureça a outra.

[1] As obras representativas dessa fase da vida intelectual de Bobbio são: Teoria da Norma Jurídica e Teoria do Ordenamento Jurídico, em que faz a transição da consideração individual da norma para uma consideração geral do corpo legislativo: “O direito é assim essencialmente composto dos enunciados do legislador (discursos) que tratam de esclarecer – a purificação da linguagem legislativa estando ao lado de uma interpretação lógico-gramatical da norma jurídica – a fim de determinar as condições factuais de aplicação, de preencher as lacunas e sistematizar os enunciados para formar um todo consistente (eliminação de antinonímias)” (Billet e Maryioli, 2005, p. 450). Em 1967 Bobbio passa a atacar alguns dos pressupostos que erigiu anteriormente, conforme identificado na conferência Essere e dover esser nella scienza giuridica”. A partir desse escrito passou a atacar o postulado positivista de que o conhecimento jurídico seria objetivo, de caráter puramente descritivo. Entende a partir de então que o raciocínio jurídico, como o do historiador, é um julgamento de avaliação de cunho pragmático.
[2] Relaciona-se como referência desse pensamento o russo-francês Georges Gurvitch, cujo método sociológico ligava a produção do direito à aceitação da comunidade social de onde emerge. Apostava numa diminuição do Estado e a reabsorção de funções que lhes foram atribuídas à sociedade. Bobbio atribui a perda de interesse nessa teoria ao movimento oposto que o Estado tomou na história a partir de então.
[3] Max Weber em Economia e Sociedade, Vol. I. É possível relacionar esse modelo social às considerações de Kelsen sobre o direito. O formalismo seria uma extensão dessa visão das instituições sociais.
[4] Nessa parte Bobbio cita estudos de Vilhelm Aubert (The social function of Law) e de F. Lombardi (La lógica dell’esperienza di J. Williard Hurst).


Referência: BOBBIO, Norberto. Análise funcional do direito em Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Manole, 2006.