terça-feira, 7 de abril de 2009

Relação entre demandas individuais e coletivas: um grande problema para o direito processual (I)

1. Um dos temas mais discutidos atualmente quanto à jurisdição civil e seu modo de atuação processual coloca ao centro do debate o impacto causado pelo advento da tutela coletiva, o qual implica em modificações que vão desde possibilidades de submeter novas matérias à adjudicação até a reformulação de técnicas processuais que a compõem.[1]

A tutela de bens coletivos alcança efetivação de todas as construções jurídicas que atribuam direitos a um grupo, confirmando uma jurisdição apta a julgar conflitos de grandes repercussões sociais que supera a noção do direito bilateral característico das relações de propriedade. Considerando as novas características do direito a ser tutelado, a técnica processual deve se reestruturar para alcançá-los, revisitando antigos princípios e conceitos.

Isso tem sido reconhecido no Brasil não somente na academia, mas também com o advento de diversas leis sobre a matéria, tais como as leis da ação popular, da ação civil pública, da improbidade administrativa, do abuso do poder econômico, do consumidor, dentre outras.

2. Debates doutrinários recentes, analisando as implicações da nova tutela em relação ao papel tradicional da jurisdição, abordam o tema da interseção entre ações coletivas na defesa de direitos difusos e coletivos em sentido estrito e ações individuais, gerando um debate polêmico em face do sistema processual vigente.

Com efeito, na defesa de direitos necessariamente coletivos, é possível que haja situações onde ações individuais e ações coletivas versem sobre o mesmo objeto que é necessariamente indivisível.

Esta não é uma situação rara, diante das repercussões às esferas individuais que a lesão a um bem coletivo pode provocar. Muitos exemplos podem ser apresentados sobre tal situação: publicidade enganosa, apesar de atingir direito difuso pode também causar lesões a direitos individuais, assim como uma lesão de abuso de direito econômico pode atingir mais diretamente um indivíduo do que outros, ou ainda uma lesão ambiental cuja repercussão geral não é muito sentida pode comprometer especificamente uma ou algumas propriedades privadas, etc.

Um mesmo fato pode gerar múltiplos efeitos, atingindo partes que podem recorrer ao Judiciário sustentando dimensões de interesses e direitos diversas. Daí porque a tutela coletiva em tais situações não exclui a tutela individual, desde que ambas se restrinjam aos seus objetos específicos. É essa a disposição do CDC (art. 104), diploma que regulamenta todas as ações necessariamente coletivas na legislação brasileira (referentes a direitos difusos e coletivos em sentido estrito).[2]

3. O objeto do processo segue, conforme a legislação brasileira, a delimitação que lhe é dada pelas partes até o saneamento da demanda. Diante dessa técnica, ações individuais e coletivas podem se desenvolver sem jamais se verificar qualquer intersecção, adstringindo-se os julgamentos de diferentes ações a diferentes objetos. Em geral, a tutela coletiva se refere a um ilícito que atinge direitos do grupo como um todo, enquanto a tutela individual se restringe a remediar o dano sofrido pelo indivíduo.[3]

Por outro lado, e em sentido que não encontra regulação na legislação brasileira, tais ações podem estar inevitavelmente ligadas, caso os elementos objetivos da demanda veiculada sejam os mesmos ou guardem entre si semelhança suficiente.

Não seria difícil vislumbrar essa situação. Para utilizarmos os exemplos acima, bastaria que em determinada ação individual o consumidor, além de pedir reparação de danos decorrentes de propaganda enganosa, submetesse ao judiciário também pedido para cessação do ilícito. Facilmente se vislumbraria tal questão também nas tutelas de dano e ilícito ambiental e de abuso do poder econômico.

Qualquer ação coletiva que fosse destinada a tutelar tais bens coletivos, encontraria nas ações individuais em curso grandes áreas interseção diante de pretensões idênticas referentes à obrigação de fazer.

4. Uma análise desses tipos de conflito pela perspectiva econômica, identifica a relevância da questão apresentada. Sempre haverá incentivos diferenciados dentro de um mesmo grupo para que se busque tutela jurisdicional sobre o assunto, diante das situações diferenciadas experimentadas por seus membros.[4]

Tal fenômeno, apesar de não encerrar em si os motivos que levam os indivíduos a proteção do interesse de grupo, explica o quão comum é a situação e como se inclina o sistema à diversidade de ações sobre a mesma questão, pois aqueles que são diretamente atingidos sempre terão mais motivos para agir do que os demais.

Isso porque, no nosso sistema em que prepondera o amplo acesso a demanda (CF/88 art. 5º, XXXV), nada impede os mais atingidos (dependendo do bem coletivo considerado pode chegar a milhões de indivíduos) ingressem com diferentes ações cujas conseqüências podem ser extremamente perigosas à ordem jurídica através dos conflitos entre decisões que podem surgir.

Some-se a isso o papel independente das instituições autorizadas a propor ações coletivas segundo a legislação brasileira, diante de sua legitimação concorrente e disjuntiva que apesar de excluir os indivíduos de propor ações coletivas não é capaz de impedir a propositura de ações individuais voltadas à mesma tutela. Resulta tal questão em permissividade de múltiplas ações coletivas coexistirem com as demais individuais. [5]

Não se ignora a restrição que é feita pela legislação para a propositura de ações coletivas por indivíduos, com o reconhecimento e respaldo unânime da doutrina.[6] Mas dessa premissa da interpretação do sistema não decorre a conclusão de que os indivíduos não poderiam levar a juízo questões individuais quando essas fossem vinculadas a questões coletivas, ante ao conteúdo que se reconhece ao princípio da inafastabilidade do Judiciário.[7]

As hipóteses, portanto, não podem ser consideradas raras nem cerebrinas. É real e até mesmo provável que a multiplicidade de demandas e o conflito prático de decisões aconteçam.

5. Nos casos em que isso ocorre, as regras processuais apontam para uma concorrência de ações difícil de resolver, que constitui um do maiores problemas atuais do processo coletivo na legislação brasileira. Que resposta pode ser sugerida para essa questão? Debatamos.

[1] SALLES, Carlos Alberto de. Processo Civil de interesse público. In: SALLES, Carlos Alberto de (Org.). Processo Civil e Interesse público: o processo como instrumento de defesa social. São Paulo: RT, 2003. Ver também GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos interesses difusos. Revista de Processo, São Paulo, n. 14/15, abr./set. 1979. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. São Paulo: RT, 2006.
[2] Sobre a existência do microssistema, verificar: GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 9a. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2007. NERY, JR. Nelson. O ministério público e as ações coletivas, in MILARÉ, Édis (coord.) Ação civil pública: reminicências e reflexões. São Paulo: RT, 1995.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica: arts. 461, CPC e 84, CDC. 2a. Ed. São Paulo: RT, 2001.
[4] SALLES, Carlos Alberto de. Políticas públicas e a legitimidade para defesa de interesses difusos in Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 121, 2006, p. 38-50
[5] Sobre a legitimidade para propositura de ações coletivas: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A ação popular no direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses difusos”, in Temas de direito processual - 1ª Série. São Paulo: Saraiva, 1977.
[6] VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: RT, 2006.
[7] DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5a. Ed. São Paulo: Malheiros, tomo I, 2005.