terça-feira, 19 de maio de 2009

Necessidade de Critérios para Valoração da Prova

1. Nenhuma das concepções de direito, seja na atualidade ou no passado, deixou de estabelecer íntima relação entre aquilo que se verifica em sociedade e a aplicação do direito. O fato da sociedade é inerente ao raciocínio jurídico porque este o toma como antecedente lógico. É em atenção às especificidades de determinado fato que o direito se manifestará.
A idéia do direito é intimamente ligada com a realidade que observa. Esta é, além de origem, o próprio fim da atividade jurídica: dela nasce e para ela se reporta na medida em que tem como mais proeminente de suas finalidades a regulamentação da sociedade segundo seus próprios padrões.
Diante dessa vinculação, a percepção dos fatos como ponto de partida para aplicação e construção do direito no caso concreto ganha importância. É em face de sua constatação que se deflagra a atividade jurídica e, principalmente, se decide por sua efetivação de tal ou qual maneira.
A análise dos fatos, nesse prisma, deve ser objeto do próprio direito já que esse somente será aplicado corretamente enquanto impuser ao intérprete a consideração de suas fontes possibilitando sua valoração.
Essas breves considerações não deixam dúvidas de que o estudo do direito, nesse particular, deve observar diretamente questões lógicas e epistemológicas centrais: Como devem ser determinados os fatos para incidência do direito? Quando seria correto considerar-se provada uma hipótese? Quais os critérios de avaliação envolvidos nesse processo?
Apesar dessas considerações serem tidas até certo ponto como lugar-comum, é assustador notar a falta de estudos doutrinários referentes aos problemas que a consideração dos fatos enseja para o direito, relegando tais questões ao segundo plano como não se sujeitassem a controvérsias ou conseqüências para o desempenho da jurisdição.
2. Dentre os estudos existentes sobre a prova e a cognição judicial, uma das mais importantes conclusões identificadas refere-se a separação entre a idéia de verdade e os objetivos do processo. Diante das limitações de cunho epistemológico (possibilidades do conhecimento humano) e de cunho jurídico (valores protegidos pelo direito e premência da decisão judicial), logo se percebeu a impossibilidade de conciliação ininterrupta entre os termos.
Essa constatação passou para a história sob a conhecida fórmula que contrapõe verdade formal e verdade material, preconizada ainda em 1914 por Francesco Carnelutti.[1] De formas distintas, a proposta de compreensão do autor italiano foi perpetuada na processualística de várias formas distintas. Não foram poucos os que, ao considerarem inalcançável a verdade, pugnavam pela certeza judicial[2] ou ainda por decisões embasadas na verossimilhança.[3]
Essa discussão é sistematicamente negligenciada pelos ordenamentos jurídicos. As regras jurídicas sobre prova dificilmente são claras quanto à matriz de pensamento ao qual obedecem, causando diversos problemas no desenvolver de suas soluções.
O ordenamento jurídico brasileiro é expressão clara da má compreensão dessa discussão. É essa a idéia que transparece na nossa própria legislação processual civil, conforme, entre tantos outros, os art. 282, VI; 332; 339, 378 do CPC, onde se emprega indiscriminadamente a palavra verdade como expressão do objetivo da atividade probatória.
Não obstante, a negligência da discussão, muitas repercussões dessa indefinição podem ser notadas na maneira de perceber as regras da prova nos sistemas processuais modernos. A má compreensão da questão dos objetivos do processo tem direta relação com os instrumentos dogmáticos construídos para desenvolvimento da atividade probatória em juízo.
Uma vez gerado consenso sobre a impossibilidade do processo judicial atingir a verdade e tê-la como único objetivo, a questão seria como organizar as instituições processuais em torno das possibilidades de cognição do processo judicial.
3. Dentre os institutos jurídicos relacionados a prova, talvez os mais sacrificados sejam aqueles referentes à sua valoração, a qual é concebida sem maiores parâmetros de controle.
O art. 131 do CPC dispõe sobre o princípio do livre convencimento motivado, como vetor das decisões sobre questões de fato apresentadas ao Judiciário brasileiro. Trata-se de norma que impõe ao processo judicial restrições importantes à cognição dos fatos inerente à sua atuação.
Ao abordar o tema, doutrina e jurisprudência normalmente se limitam a distinguir esse sistema de apreciação e decisão sobre a prova em comparação com outros sistemas significativos na história do processo, tais como a prova tarifada ou o convencimento íntimo, com o propósito de afirmar a superioridade da solução vigente.[4]
Argumenta-se que o livre convencimento motivado é o sistema mais adequado para a valoração da prova porque equilibra com maior probabilidade de êxito o controle do poder jurisdicional quando da interpretação dos elementos trazidos aos autos (objetivo do mecanismo de tarifação da prova) e a liberdade de interpretação necessária ao exercício desse poder que deixa os juízos mais capazes de compreender corretamente a situação de fato (instituída através da outorga do convencimento íntimo). Tal se afigura especialmente perante estudiosos nacionais.[5]
Essa proposta de compreensão da cognição judicial, entendida de maneira sistemática com outros dispositivos legais, pretende controlar o juízo de fato ao estipular os seguintes limites: a) convencimento deve seguir os ditames do conhecimento racional; b) deve resultar dos elementos colhidos nos autos; c) deve ser justificado quando da decisão sobre os fatos; d) deve obedecer, em certos casos, a valoração prévia da lei (v.g. presunções legais relativas ou limites de admissão ou eficácia de meios de prova).[6]
4. Tais normas surgiriam como controles suficientes da argumentação judicial relacionada aos fatos da causa, as quais impediriam arbitrariedades e proporcionariam uma decisão legítima. Por vezes, entretanto, tais critérios são considerados falhos em relação ao objetivo de afastar excessos por parte dos juízes na interpretação do conjunto probatório:

“[...] o emprego dessas técnicas e o respeito aos princípios e garantias mencionados correm o risco de não afastar de todo a onipotência judicial. O problema é muito mais complexo e se mostra bem possível que o órgão judicial, mesmo com uma autêntica proclamação de princípios, ao justificar determinada visão dos fatos, lance mão de critérios vagos e indefinidos, utilizando de fórmulas puramente retóricas despidas de conteúdo, aludindo, por exemplo, à ‘verdade material’, ‘prova moral’, ‘certeza moral’, ‘prudente apreciação’, ‘íntima convicção’ e expressões similares, autênticos sinônimos de arbítrio, subjetivismo e manipulação semântica por não assegurarem nenhuma racionalidade na valorização da prova, implicarem falsa motivação da decisão tomada e impedirem, assim, o controle por parte da sociedade, do jurisdicionado e da instância superior.”[7]

Essa noção é compartilhada por diversos estudiosos da prova judicial, ao se deter mais seriamente no estudo do livre convencimento motivado, ao ponto de parecer unânime que – não obstante todos os ganhos que esse sistema representa para a obtenção do juízo de fato de maneira mais adequada – há custos a serem considerados.
5. Dessa maneira, tem-se que o livre convencimento deve envolver uma apreciação correta da prova que não está isenta de critérios de ordem objetiva que englobam regras básicas do conhecimento humano verificável e na teoria da argumentação aplicada à cognição judicial.[8] A decisão sobre fatos nessa seara, como de resto em toda decisão social, deve repousar sobre base epistemologicamente correta, para que goze de aceitabilidade no corpo social.
Assim, a liberdade (no sentido de independência) do juízo probatório não pode significar ausência de regras para valoração e decisão sobre tal matéria.
Tradicionalmente duas vertentes foram desenvolvidas nesse sentido: a primeira de cunho psicológico que tinha por objetivo ressaltar as questões emocionais relacionadas com a decisão judicial; a segunda, que tinha por objetivo vincular a decisão a pressupostos racionais. Ambas têm o propósito de minorar o subjetivismo judicial e diminuir os erros na cognição dos fatos.[9]
Enquanto afigura-se difícil aos institutos jurídicos criar mecanismos de controle psicológico, dadas as condições particulares de cada julgador em face de diferentes casos, novidades podem ser propostas quanto aos procedimentos racionais envolvidos.
Além dos esforços para esmiuçar a argumentação referente a esse tipo de decisão, verificado em estudos referentes à lógica[10], o direito processual pode criar diversos outros critérios de maneira possibilitar decisões mais legítimas em matéria de fatos na cognição judicial, conforme se verifica na experiência estrangeira.
As reflexões comuns na processualística brasileira são pertinentes para exigir da decisão judicial uma fundamentação e esboçam controles ao arbítrio. Entretanto, dificilmente se sustentará que esses critérios orientam corretamente as decisões desse tipo. Eles deixam em aberto muitas questões seriamente vinculadas aos objetivos da instrução probatória.
6. Conforme se verifica, aborde-se paradigmas de verdade, certeza ou verossimilhança, nenhum deles terá qualquer resposta sobre critérios de consideração ou suficiência da prova. Isso porque o maior problema de não existirem considerações a restringir tal atividade jurisdicional é liberá-la ao arbítrio do juiz conforme seu convencimento subjetivo, apresentando razões que o levaram a tanto.
Organizar dessa maneira as regras probatórias significa passar ao processo insegurança desmedida por conta da liberação do juiz à questão da suficiência da prova, deixando as partes sem referência sobre a desincumbência de seu ônus de provar suas alegações.
Não fosse somente isso, equipara indevidamente situações cujas diferenças são relevantes: certamente não são equivalentes os critérios de suficiência de prova para aplicação de sanções penais, de indenizações civis ou questões de aferição do dano e da reparação ambiental. Os graus exigidos de corroboração dos fatos pelas provas admitidas no processo são evidentemente distintos conforme os casos julgados, critério totalmente desconhecido da legislação brasileira e das discussões doutrinárias recentes.
Diante da falta de reflexões em relação ao tema da valoração probatória nos estudos nacionais, se faz imprescindível a consideração desse importante tema não somente do direito processual como técnica, mas da própria aplicação do direito como conjunto de normas de caráter epistemológico-jurídico.
A aplicação do direito exige, como todos os outros ramos do conhecimento humano, estudos que esclareçam as condições de interpretação de seus fenômenos probatórios.



Notas:
[1] “Casi toda la doctrina tiene conciencia más o menos sincera de esta alteración del significado corriente de la palabra prueba, y tras haber advertido que prueba es la demonstración de la verdad de um hecho, siente casi siempre la necesidad de precisar su significado jurídico completando así la definición: demonstración de la verdad de un hecho realizada por los medios legales (por modos legítimos) o, más brevemente, demonstración de la verdad legal de un hecho. Una definición de este gênero no puede em rigor reputarse inexacta, pero, para no aparecer como tal, debe ayudarse con una metáfora que vimos usada em la antítesis entre verdad material y verdad formal: en efecto, la verdad que se obtiene con los médios legales, sólo puede ser la segunda y en manera alguna la primera. Decir, por tanto, que prueba en sentido jurídico es la demonstración de la verdad formal o judicial, o decir, em cambio, que es la fijación formal de los hechos discutidos, es, en el fondo, la misma cosa: aquélla es sólo una expresión figurada y esta uma expreción directa de um concepto esencialmente idêntico.” CARNELUTTI, Francesco. La prueba civil. 2ª. Ed. Trad. Niceto Alcalá-Zamora y Castillo. Buenos Aires: Depalma, 2000, p. 44.
[2] ROSEMBERG, Leo. La carga de la prueba. Buenos Aires: EJEA, 1956, passim.
[3] CALAMANDREI, Piero. Verità e verosimiglianza nel processo civile in Opere Giuridiche. Padova: Morano Editore, vol. V., 1972.
[4]A título de exemplo, colacionamos algumas obras que apresentam sem maiores debates o sistema do livre convencimento motivado como derradeira evolução do sistema de apreciação da prova: CINTRA, Antônio Carlos Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 23ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007. SILVA, Ovídio A. Baptista; GOMES, Fábio Luiz. Teoria geral do processo civil. 4ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 303-307. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: Jus Podivm, 2007, 67-70.
[5] Para um apanhado histórico mais adequado da questão, verificar: CHIOVENDA, Giuseppe. Istituzioni di diritto processuale civile. 3ª.Ed. Napole: Jovene, 1947, v. 1, n. 32, p. 116 e seguintes.
[6] DINAMARCO, Cândido R. Instituições de direito processual civil. 5ª. Ed. São Paulo: Malheiros, vol. III, 2005, p. 105.
[7] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil. 2ª. Ed. Rev. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 162.
[8] GHIRARDI, Olsen A. Logica de la casación: errores in cogitando in Scritti in onore di Elio Fazzalari. Milano: Giuffrè, 1993, p. 493.
[9] NOBILI, Massimo. Il principio del libero convencimento. Napoli: Giuffrè, 1974, p. 55.
[10] FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 91-138.