quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A verdade e as formas jurídicas, de Michel Foucault

Entre os dias 21 e 25 de maio de 1973, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Michel Foucault apresentou cinco conferências que foram compiladas nos Cadernos daquela instituição e publicados diversas vezes ao longo do tempo em edições avulsas sob o título A verdade e as formas jurídicas.
Trata-se de obra bastante representativa do pensamento de Foucault, da temática ao seu desenvolvimento. O elemento central desse estudo é a análise de diversas formas de poder que estão subentendidas na sociedade contemporânea de modo a sustentar seu modo de ser. Para isso, sustenta que mesmo as formas de saber estão intimamente ligadas às formas de dominação que a organização social exige de modo a funcionar perfeitamente.
Bem ao seu estilo, Foucault tenta demonstrar isso através da história das instituições, em especial das instituições jurídico-penais, cujo aparato seria representativo do que chama sociedade disciplinadora inspirada no Panopticon de Bentham, desencadeada a partir das necessidades dos detentores do poder no século XIX de buscar a integração do homem com o ideal de produção capitalista.
Sua narrativa começa com o intuito de desvincular o conhecimento de uma linha evolutiva da razão, como uma progressão de saberes independentes, para vinculá-los e subordiná-los às relações de poder socialmente desenvolvidas. Daí porque o autor busca iniciar no Édipo-Rei sua análise, de modo a identificar em Sófocles e no relato que faz das formas de conhecimento das práticas judiciárias da época uma das representações do pensamento grego que visava desvincular o saber do poder tirânico. Segundo propõe, a confirmação da conspurcação de Édipo não é apenas objeto de revelação dos deuses e plausivelmente cogitado pelos próprios nobres, mas apenas é confirmado por humildes escravos, comprovando que a verdade independe da vontade, da posição social. Isso coincidiria com a proposta grega de poder do povo, já que o sujeito de conhecimento a determinar a verdade seria o próprio povo representado pelo coro “Nós que te chamávamos de nosso rei”.
Em Édipo se percebe a superação das formas jurídicas mais arcaicas do juramento que eram usados para resolver os litígios anteriormente. Há uma investigação, um inquérito, o qual o autor identifica amplamente com a questão do poder.
Seria na Baixa Idade Média (século XIII) que o inquérito teria se firmado como forma de conhecimento ao se passar do direito germânico arcaico ao direito feudal desse período um pouco mais centralizado. Na falta de uma autoridade julgadora, não havia sentido em buscar versões sobre verdade dos fatos, mas sim em propor testes para essas versões com base na vitória em duelos ou provações. Foucault sugere que o vocábulo prova (ao contrapô-lo a inquérito) advém dessa prática e não da análise de representações de um determinado fato passado. Com uma autoridade decisória, desenvolve-se uma necessidade de criar critérios de justificação para a decisão.
O inquérito como forma de conhecimento é distinta na antiguidade e na Idade Média. Com o desaparecimento do Império Romano e o declínio da civilização grega. Enquanto a antiguidade propunha um poder central justificado e via diversos bens de produção a serem protegidos como riqueza social, a Idade Média havia perdido essa referência de proteção dos bens produzidos, sendo o litígio, a contestação uma forma de fazer circular bens de produção bastante favorável aos mais poderosos. Isso somente encontra termo quando dos primórdios do poder central. Estabelecer tal forma de poder significaria criar uma ordem soberana que seria desrespeitada sempre que houvesse qualquer violação ao comando do rei (infração), caracterizando-o como o principal prejudicado por atitudes criminosas dos particulares. Daí a criação de todo um aparato para resolução dos conflitos que envolvia a conivência e enforcement de um poder autônomo.
Ante essa configuração do poder é que surgiu o inquérito, como forma de investigação da verdade e não mais provação das versões apresentadas. O objetivo não seria mais a vitória, mas o testemunho, como forma de prorrogar a autoridade, fazê-la presente. Eis a origem do inquérito e não a progressão da razão. Seria na necessidade do exercício do poder que estaria lastreada essa tecnologia. Tanto assim é que os outros setores somente desenvolvem essa forma de investigação posteriormente ao advento desse para o exercício do poder. O desenvolvimento cultural posterior ao advento do inquérito é que levaria ao Renascimento, definido pela generalização do inquérito como forma de saber. Mas é uma forma de autenticar a verdade, com a finalidade de exercer o poder.
Conforme a leitura do autor, esse mecanismo caracteriza a forma de poder necessária ao momento histórico referido que está na base da organização social ocidental. Entretanto, o destino dessa forma de conhecimento estaria atrelado a essas condições e toma novo rumo a partir do que denomina sociedade disciplinar, identificada desde a Europa do século XIX.
Por sociedade disciplinar o autor quer se referir a um dos traços característicos desse momento histórico simbolizado pelo panoptismo de Bentham (prédio em forma de anel com uma torre central equipada com venezianas semi-abertas, a permitir a observação dos indivíduos por aqueles investidos de poder sem que saibam quando estão sendo observados). Trata-se de uma forma de poder exercida sob os indivíduos de maneira específica e contínua, em forma de controle de punição, recompensa e correção, mais precisamente, “formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas” (p. 103). Essa sociedade exigiu uma forma diferente de saber, que Foucault caracteriza como exame.
Ao invés de buscar entender fatos retrospectivos, o exame tem a finalidade de verificar se o indivíduo está adequado ou não a normas, se está subjugado às relações de poder vigentes na sociedade. Essa forma de conhecimento não mais pretende observar o que passou mas conhecer as características do próprio indivíduo para lhe controlar a conduta de acordo com as necessidades sociais de integração dos indivíduos ao processo produtivo.
Também na passagem entre essas duas sociedades, é importante a análise do direito penal que incorpora as necessidades do controle e, assim, novos objetivos antes não verificados na teoria que o estabeleceu. É interessante notar a diferença entre a formulação de Beccaria do direito penal e o desenvolvimento que acabou tomando na sociedade do século XIX, em especial com relação às penas. Embora essa análise seja fundamental para caracterizar as relações entre epistemologia e poder, o autor diz que o mesmo reflete em diversas relações interpessoais dessa sociedade, seja na escola, fábrica, hospitais psiquiátricos, etc.
Seguindo os passos do pilar intelectual em que se apóia (Nietzsche), Foucault prepara o campo de desenvolvimento de Surveiller et Punir. Segue a linha em que recusa à razão ocidental e à forma de saber que representa a objetividade que pretende, vinculando a abrangência de sua prática às relações de poder vigentes na sociedade. A cristalização dessas através do direito, especificamente do direito penal, representa a consolidação institucional e a maturidade que assumem em cada sociedade e indicam, segundo o autor, parâmetro confiável à investigação.