quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Günther Teubner: Policontexturalidade e Direito



1. O autor parte de uma pressuposição que merece ser aceita: há um movimento quase irresistível transferências de importantes tarefas antes entregues a intervenção estatal, ao domínio privado. As circunstâncias praticamente obrigam que todos se adéqüem ao cenário mundial, sob pena de obstar a própria inclusão na nova economia com graves conseqüências sociais.
Diante dessa situação, é comum se exortar a necessidade dos mecanismos de mercado atuar sobre aspectos do bem comum, substituindo o setor público (antes tutelados pelo Estado de direito, direitos fundamentais, princípios de direito público e pela legitimidade democrática), ou incorporando seus princípios e elementos.
O autor questiona essas assertivas, dizendo-as indevidamente reduzidas em sua complexidade pela dicotomia público-privado. Daí porque propõe alternativa a essa compreensão:
[a] A análise deve escapar à dicotomia do direito público vs direito privado, apresentando a esse último o desafio de considerar pluralidade de autonomias privadas distintas.
[b] Diante do novo quadro social, não se deve impor ao direito privado os padrões do direito público, mas transformá-lo num direito constitucional dos subsistemas caracterizados por regimes autônomos.

2. Tanto as ciências sociais quanto o direito vêem como indevida as relações entre Estado e sociedade serem reduzidas à dicotomia público-privado. Entretanto, não tem substituído tal mecanismo de análise, subsistindo como instrumento de compreensão.
A dicotomia não é recente e tem o mérito de sobreviver à diversos diferentes tipos de estruturação social. Existiu para opor polis e oikos na sociedade antiga, Estado e sociedade na sociedade moderna, hoje como setores público e privado. Atualmente, adotam conteúdo específico, opondo de um lado a racionalidade política e sua organização hierárquica (público) vs racionalidade econômica, sua coordenação de mercado flexível e eficiente (privado).
O autor sugere o abandono dessa distinção por ser simplificação grosseira da estrutura social e da idéia de fusão das características de cada lado da dicotomia. Ao invés disso, a partir da teoria dos sistemas, propõe a compreensão da sociedade pela noção de policontexturalidade.
Essa proposta parte da grande complexidade que a sociedade assume, exigindo multiplicidade de perspectivas para sua descrição. Entre o Estado e a sociedade há uma pluralidade de setores sociais que tem de ser considerados, refletindo na compreensão e estruturação do direito. Há diversos setores da atual diferenciação social que não encontram explicação nem na racionalidade política, nem na racionalidade econômica (ex. nem a pesquisa, nem a relação médico-paciente podem ser explicadas exclusivamente pela dicotomia).

3. Emerge do paradigma proposto que o direito privado deve ser entendido principalmente por sua afinidade com a atual pluralidade de discursos, diante de sua proximidade com os mais diversos setores autônomos da sociedade civil (relações privadas, sistema de saúde, educação, ciência, meios de comunicação, arte, religião, etc). Nesse contexto, o direito privado teria a tarefa de refletir a lógica interna desses setores e acoplá-la com o regulamento dos demais subsistemas. Assim teria distanciamento da lógica econômica e da política, passando a refletir a importância da racionalidade específica para cada subsistema social.
Há uma tentativa de desvincular o direito privado da noção de juridificação da esfera econômica. Historicamente essa tendência confirmou-se na medida em que o direito contratual tornou-se referente quase que exclusivamente das transações de mercado, a regulamentação das associações restringia-se às corporações empresariais, propriedade destinava-se a fundamentar disposição econômica, etc. Isso dificilmente poderia ter sido impedido ante a colonização dos sistemas sociais pela economia ou pela política no século XX, tendo o direito privado seguido as tendências de alargamento e encolhimento conforme a expansão dos campos econômico ou político (respectivamente sociedade de direito privado, orientado pela eficiência econômica; ou direito privado como direito econômico, orientado pela política econômica do Estado).
No novo paradigma, identificar-se-ia o direito privado em muitos âmbitos sociais onde há criações normativas espontâneas atuando como fonte de imposições normativas jurídicas, como faz prova a crescente quantidade de contratos privados.
A dogmática tradicional realçou corretamente a autonomia privada (auto-regulamentação) como cerne do direito privado. Mas em seu ímpeto a unidade dogmática não atentou para o pluralismo atual, expresso na multiplicação discursiva das autonomias privadas de uma sociedade complexa e diferenciada.
A tarefa central de um direito privado socialmente orientado seria repensar a única dimensão da autonomia privada, expressa no indivíduo livre, para conceber autonomia de diversos mundos sociais, servindo de instrumento para disponibilizar formas de ação adequadas entre cada uma das esferas autônomas (relações privadas, sistema de saúde, educação, ciência, meios de comunicação, arte, religião, etc). Assim, seu cerne é a juridificação de processos de construção normativa espontâneos e plurais na sociedade, distintos do processo de regulamentação política do Estado.

4. Ocorre que as características que o direito privado deve assumir são fonte de controvérsia (identificação com quais fragmentos sociais, forma de delimitação dos seguimentos, definição de suas racionalidades específicas, espécie de normatividade interna desenvolvida por cada uma, relacionamento possível com instituições político-jurídicas, definição e concepção relacionada à essa pluralidade).
Considerando esse debate e a ligação do direito privado com a produção normativa espontânea, uma de suas tarefas é reformular a autonomia privada clássica levando em conta a auto-regulamentação específica de setores sociais.
A principal conseqüência da pluralidade das autonomias privadas é de caráter normativo, cujo desafio é institucionalizar o equilíbrio entre autonomia e intervenção. Talvez o regime de autonomia do sistema econômico seja um bom exemplo de coordenação desses fatores para os outros âmbitos de autonomia da sociedade civil. Outro desafio é a garantia de respeito a essas esferas de regulamentação privada, a qual deve ser buscada não somente na organização interna, mas também nos apoios externos de outros sistemas.

5. Analisando as privatizações da policontexturalidade (não da dicotomia) passa-se a considerar as diversas autonomias privadas de criações normativas espontâneas e seu funcionamento. Privatização significaria alterar a autonomia de esferas sociais parciais por meio de substituição de mecanismos de acoplamento estrutural com outros sistemas sociais de forma a preservar princípios de racionalidade e normatividade que os caracterizam.
Sob essa ótica, a privatização divide duas formas distintas de organização social: [a] antes da privatização, quando os setores sociais eram colonizados pela racionalidade política causando bloqueio das energias sociais (1º. Mismatch); [b] após a privatização, quando a sociedade liberada dos entraves políticos acaba sofrendo colonização pela racionalidade econômica e sua lógica de mercado (2º. Mismatch).
5.1 [1º. Mismatch] Setores sociais autônomos estavam submetidos ao regime público. Isso não significa que suas lógicas e padrões racionais estavam encobertos pela política (talvez tenha ocorrido em regimes fascistas). No sistema liberal-capitalista, houve tentativa do Estado Social de ampliar o setor público em face da sociedade civil, mas sem destruir as autonomias sociais, manobrando-a através de estreito acoplamento dessas ao sistema político-administrativo.
Assim, a política era fonte principal das irritações internas a cada setor. No seio do próprio Estado Social já se notou que para alguns setores periféricos à análise política a emancipação era possível com repercussões claras na própria dogmática administrativa.
O problema perene dessa organização era o desequilíbrio estrutural entre atividades sociais e seus regimes político-administrativos. A crítica econômica foi eficiente em constatar que a direção política não se adequava a lógicas próprias das ações sociais, fazendo-o com custo de transação insustentável.
Foram os custos gerados pela influencia política na integridade dos serviços públicos que representaram fortes motivos para a privatização. Fazia-se dos setores autônomos sensíveis à política, mas indiferente ou menos atento às demais racionalidades. Assim a privatização significou a liberação de energias sociais.
Aqui não se pode esquecer a improdutividade de uma economia colonizada pelo Estado em viabilizar a introdução das sociedades no paradigma do informacionalismo, o que somente pode ser feito na medida em que se possibilita um amplo espaço de movimentação que a racionalidade política não é capaz de acompanhar.
5.2 [2º. Mismatch] Após a privatização e a liberação das dinâmicas sociais autônomas dos acoplamentos com a política e burocracia, emergiu outra condição dominante em relação aos acoplamentos: o domínio econômico, através do qual o mercado passa a centralizar os contratos entre sistemas autônomos (passam a ser empresas que respeitam o princípio do lucro e estão sujeitos à concorrência econômica).
Apesar de criar maior espaço para as dinâmicas sociais, o Mismatch econômico aparece em longo prazo ao alijar gradualmente as atividades incapazes de sobreviver economicamente, suscitando resistências sociais internas da cada setor e reações político-jurídicas a esse desequilíbrio.
A maioria das formas de Estado Regulador (atua por regulamentação – e não intervenção – econômica e social) não aborda a policontexturalidade, mas a dicotomia, na medida em que presumem centralização política. Tampouco as políticas alocativas e distributivas abordam o paradigma proposto. Constituem meras reformulações da dicotomia sob novos instrumentos.
O autor propõe que em lugar disso, os critérios de regulamentação devem se desenvolver espontaneamente nas diversas esferas de legalidade. As controvérsias internas e os conflitos externos devem se distribuir entre a pluralidade de sistemas sociais em reflexão descentralizada em oposição à reflexão exclusiva do político. É nisso que o direito privado pode contribuir (no nível material e processual) em viabilizar a consideração da racionalidade específica e possibilitar o processo de reflexão onde se formulam novos critérios para o conflito entre atividades sociais e regime econômico.

6. Há diferentes desequilíbrios entre setores sociais e regime econômico considerando o setor em questão, o que impede que se estabeleçam regras gerais de acomodação. Mas é possível explicitar problemas típicos das formas de acoplamento que apresentam. Trata-se de descobrir o campo de problema em que a lógica de mercado colide com princípios fundamentais dos sistemas sociais em questão. Na seqüência são destacados alguns desses problemas.
6.1 Corrupção Estrutural: Observe-se o caso dos Pink Students, filhos de grandes acadêmicos (sem o mesmo talento) que recebem generosos financiamentos para desenvolverem suas pesquisas em universidades privadas, chegando a ocupar 15% das vagas disponíveis.
Mesmo não havendo proibitivos ao patriotismo acadêmico, corrompe-se estruturalmente o padrão científico-pedagógico o princípio do desempenho e seus conceitos de igualdade de admissão e oportunidades em função das vantagens que pode gerar a instituição.
Os tribunais europeus não querem intervir nas políticas de instituições privadas sob o argumento de... serem privadas.
A não intervenção é uma conseqüência bizarra da perspectiva da dicotomia já que setores sociais como a educação não se encaixam a ela. O novo direito privado deve compreender a diversidade de racionalidades e acomodá-las.
Casos semelhantes: Meios de comunicação (perspectiva da dicotomia autoriza a percepção dos meios de informação como instituições privadas onde o lucro ameaça a integridade jornalística); Caso da vaca-louca (houve demissões de cientistas de repartições públicas por não se concordar com suas conclusões; financiamentos de projetos científicos financiados por lobbies; política como óbice ao fomento da pesquisa científica).
Apesar dessas colisões entre racionalidades e novas tentativas de colonização, é encorajador o fato da moral pública respaldar o fortalecimento das autonomias sociais que pode ser feita pelo direito privado.
A ética da economia ensina que se deve respeitar a integridade dos sistemas autônomos.
A teoria dos sistemas (policontexturalidade) não recomenda a colonização desses sistemas autônomos.
A compreensão dessas fronteiras combina com o direito privado: criar muralhas entre esferas de ação, coibir combinações incompatíveis de papeis, abrir espaços decisórios autônomos são soluções que podem ter êxito no combate a corrupção estrutural.
6.2 Exclusão Social: A privatização trouxe em alguns setores a exclusão de diversos indivíduos. Pobres, deficientes desabrigados são discriminados e privados de acesso em alguns setores. Os membros da sociedade somente tem acesso a suas atividades conforme condições próprias do sistema, mas as condições de acesso universal encontram-se em conflito. O novo regime (que repousa na rationale econômica) discrimina pelo poder de compra, criando poderoso Mismatch.
A reação jurídica é impor normas de acesso necessárias a cada setor, conforme suas realidades próprias. Exemplo disso é o regime de telecomunicações da UE: determina mínimo de prestação de serviços de qualidade específica para todos os usuários a preço acessível, sob princípios de generalidade, igualdade e continuidade. É nesses casos que o direito privado tem a missão de compatibilizar lógicas de ação contraditórias, impondo normas específicas às transações econômicas.
Já havia meios antigos de fazer isso considerando a dicotomia como o controle judicial das condições do contrato. Na policontexturalidade, verificam-se novas opções tais como da divisão adequada de subvenções cruzadas para atividades não lucrativas entre concorrentes, administrações não orientadas para o lucro, imposição de padrões sócio-culturais a empresas, etc.
6.3 Contratualização e Externalidades: Ante a perspectiva da dicotomia, entende-se que a privatização submeteu serviços públicos a regimes tradicionalmente privados em prejuízo da complexidade social evidente. Assim, operações complexas, formadas por diversos vínculos contratuais, seriam tomadas isoladamente conforme o histórico direito de obrigações identificado com a rationale econômica.
Pela compreensão da policontexturalidade, isso seria uma distorção das relações sociais pela consideração econômica. Cria-se problema de difícil resolução porque além das partes do contrato podem estar envolvidos interesses de terceiros. Daí porque essa consideração deve introduzir princípio de relatividade nas obrigações multilaterais, o que deve ser intensificado enquanto que o purismo dogmático entende acontecimentos sociais em partes independentes, não relacionadas. Assim, aumenta a pressão sobre a dogmática do direito privado para que aceite a complexidade.
6.4 Fronteiras da Monetarização: Até onde se pode permitir a atribuição de valores econômicos a todo tipo de bem? Lutero se voltou contra isso na Reforma. Agora a questão aparece novamente, em especial no âmbito da bioética (clonagens de seres humanos, por exemplo).
6.5 Dumbing Down: Instituições reconhecidas por suas qualidades na arte, cultura, comunicação e educação perdem espaço para concorrência em níveis estritos de mercado por estarem diretamente expostas a sua lógica. A policontexturalidade entende que devem ser erigidos critérios que reflitam a racionalidade interna do setor através do direito privado, instituindo direito a diversidade.
6.6 Seletividade Perversa: Não se faz atenção às reais distinções de desempenho quanto a racionalidade de cada setor.

7. Após a privatização, como se desenvolverá o direito privado? Como lidará com os Mismatches entre atividade e regime?
A resposta depende dos rumos do processo de privatização, sendo necessário vislumbrar alternativas. O autor imagina dois cenários distintos: fragmentação ou hibridização do direito privado.
A sociologia distingue entre acoplamentos frouxos ou firmes entre os sistemas sociais. Na conjuntura atual posterior a privatização, o direito privado vai responder conforme se mostrem frouxos ou firmes os acoplamentos entre autonomias sociais e processos econômicos.
De um lado, pode se fragmentar, como resposta a frouxidão dos acoplamentos entre sociedade e economia (com maior autonomia à sociedade); de outro, pode se hibridizar, respondendo a um acoplamento firme de tudo à economia. Em ambos os casos se frustra a esperança de unificação do direito privado em torno do regime de mercado.
7.1 Fragmentação: A fragmentação depende diretamente da força que os setores sociais independentes da economia e da política serão capazes de exercer daqui para frente.
A autonomia privada depende diretamente de um sistema social revela-se na existência de um maquinário de produção normativa (mecanismos de consenso, organizações formais, padronização) desempenhando um papel de fonte independente do direito.
O autor é otimista quanto a possibilidade dos setores sociais atingirem bom grau dessa autonomia, como ocorre, por exemplo, com o direito de família: a sociedade encurrala o Estado sobre as possibilidades de auto-organização, ganhando espaço para sua própria racionalidade no seu interior, fazendo com que o direito de família reaja quase exclusivamente à racionalidade da vida privada e sua criação normativa espontânea.
É possível conceber direito dos Regimes Privados que considere a poliarquia deliberativa, instituindo sistemas de resolução de problemas. Assim se vislumbra, por exemplo, que as instituições universitárias privadas sejam submetidas ao escrutínio da racionalidade do sistema do qual faz parte, de maneira a acabar com a política de proteção aos pink students e regerem-se pelos princípios pedagógicos.
Por fim, não é só do acoplamento frouxo que depende uma realidade fragmentada, mas também da capacidade do direito como tecnologia suportar as oportunidades estruturais de emancipação na contemporaneidade. É assim que direito contratual, societário, direito real, todos tem de apresentar formas jurídicas suficientemente elaboradas para oferecer ao terceiro setor a oportunidade de institucionalizar suas racionalidades autônomas. A fronteira é o terceiro setor.
7.2 Hibridização: Ocorreria em situação na qual os sistemas sociais fossem fortemente acoplados à economia, comercializando completamente seus padrões de racionalidade em lógica de mercado, fazendo com que os conflitos sejam percebidos como operações de cálculo econômico (custo-benefício, eficiência alocativa, custo de transação). Isso significa uma perspectiva dos conflitos sociais filtrada (para não dizer falseada) pela racionalidade econômica.
O direito privado teria nesse cenário a função de reorganizar o acoplamento estrutural dos setores sociais à sua racionalidade não econômica, ao compreendê-los por sua natureza híbrida. Tal natureza híbrida não reflete o sentido tradicional de público-privado (restrição às racionalidades política e econômica), mas no sentido policontextural de que integram ao mesmo tempo sistema econômico e social no qual desempenham funções.
O direito privado deve funcionar de modo a quebrar o acoplamento de cada setor com a economia (dotado de self-enforcing) e fortalecer os aspectos sociais relacionados, buscando normatização para além das regras de mercado noutros processos paralelos e contraditórios a ela.
Teubner tem uma tese em relação ao direito contratual, ao sustentar que passa a se fundar em dois mecanismos de regulação: [a] transação economia; [b] acordo produtivo no setor social. A reconstrução do contrato seria mais que uma transação econômica que cria expectativas nas partes, mas passaria a ser considerado projeto produtivo num dos mundos sociais. Aqui, não se fala mais de conteúdo jurídico dispositivo, porque não basta a compensação de interesses das partes. Interessa a justiça discursiva, em que as formas contratuais são feitas para satisfazer a normatividade interna do sistema social.
Com isso, há alteração dos processos de criação normativa do direito privado (irritação por acontecimentos externos; simulação de processos sociais). As irritações não serão exclusivamente captadas no mercado, mas pelas necessidades da reconstrução jurídica quando do restabelecimento do padrão social. A simulação não poderia mais ser apenas teste de mercado, mas um teste discursivo com objetivo de identificar padrão concreto da realização de processo micropolítico numa das muitas esferas de justiça.
Assim o papel do direito privado seria defender as esferas de autonomia social da influência totalizante da economia.
Nem mesmo as teorias de mixed economies poderiam satisfazer os requisitos aqui colocados ao direito privado. Nessas teorias, o objetivo é corrigir falhas de mercado por meio da intervenção política consubstanciada em normas de contenção (como o direito do consumidor). Isso é muito diferente do proposto: [a] não há correção posterior de transações econômicas, mas sim um contrato constituído de duas dinâmicas sociais equivalentes mais o objetivo de conciliação de colisões discursivas. [b] aspectos não econômicos não serão mais filtrados pelo processo político para se transformarem em direito, mas reagindo diretamente a produção normativa espontânea.
7.3 Reimportação de conflitos como reação à privatização: Uma outra conseqüência da privatização é o retorno de conflitos tidos como superados em tempos anteriores por outras formas de estruturação social (acopladas fortemente ao juízo político do Estado Social, por exemplo). Além das novas tensões, antigas também são identificadas. O direito privado tem de preparar suas estruturas dogmáticas para essa realidade sob a prespectiva da justiça discursiva policontextural.


Referência: TEUBNER, Günther. Após a privatização: conflitos de discursos no direito privado contante da obra Direito, Sistema e Policontexturalidade. Piracicaba: Unimep, 2005, p. 233-268

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Norberto Bobbio e sua Análise Funcional do Direito


1. A trajetória acadêmica de Norberto Bobbio é um dos pilares sobre os quais é edificada a história do pensamento jurídico italiano no século XX. Dedicou-se intensamente ao estudo do direito, tendo feito coro ao positivismo jurídico de Hans Kelsen. Travou vários debates nas décadas subseqüentes ao pós-guerra, defendendo a concepção kelseniana contra o jusnaturalismo, que havia voltado à moda como reação às críticas dirigidas ao uso da doutrina do direito positivo pelos Estados totalitários.
O pensamento jurídico de Bobbio é marcado por duas distintas, mas complementares, fases de produção sobre o positivismo jurídico na Itália.
Na primeira fase, o autor tinha como tema fundamental a definição científica do direito, definindo seus lindes metodológicos equiparados às ciências naturais. Ao seu modo, identifica na pirâmide kelseniana a consideração do direito não como uma microteoria da norma como objeto singular e autônomo, mas para uma macroteoria que consiste em considerar um complexo de normas constitutivo da ordem jurídica e das relações entre elas.[1]
Em 1968, Bobbio abandonou a cátedra de teoria do direito para dedicar-se à ciência política em Turim, onde desenvolveu trabalhos de semelhante estatura. Jamais, entretanto, deixou de publicar sobre o direito que continuou a estar dentre suas principais preocupações. É esse fato que marca reviravolta considerável do pensamento jurídico do autor, que passa a reconhecer explicitamente os limites do modelo epistemológico herdado do movimento formalista do direito.
Já posteriormente ao advento da nova cátedra, Bobbio publicou obra onde constavam ensaios diversos em que mudava sua linha de raciocínio sobre o direito, desenvolvida ao longo de muitas décadas. A questão normativa, estrutural, do objeto do direito não mais estava dentre suas preocupações, mas sim seu caráter funcional pelo qual visava responder a pergunta: para que serve o direito?
Naturalmente, diversas fronteiras se abririam ao pensamento jurídico a partir dessa reflexão, mesmo porque tal alternativa, segundo Bobbio, não excluiria tudo aquilo que ele mesmo já havia produzido ao tomar o direito como norma. Apenas seria acrescentada uma dimensão teleológica à reflexão jurídica a qual garantiria uma decisiva abertura das normas ao mundo dos fatos, à organização social.
O ponto central que motiva as reflexões de Bobbio sobre tal função teleológica é o advento do Estado Social e atribuição de novo papel ao direito, a saber, seus atributos promocionais. Com isso, o direito não mais se restringe a sua função repressiva, passando a incentivar e dirigir os comportamentos sociais em direção ao ideal social que propaga. A motivação do autor nesse particular é dobrada quando comparado com suas reflexões políticas, que têm como objetivo conciliar os postulados liberais (princípios de liberdade) com aqueles da tradição socialista (princípios de igualdade).
Diante da ausência de reflexões sobre tal dimensão do direito dentre as preocupações formalistas, a sociologia do direito passa a desempenhar papel fundamental no estudo jurídico.

2. A contradição histórica entre abordagem formalista e sociológica é muito anterior a verificada nesse autor, tendo sido definida pelo embate das fontes do direito (respectivamente monistas e pluralistas). Na época, os chamados estadistas (predecessores do formalismo) identificavam o direito com a norma, os sociólogos do direito viam esse objeto produzido diretamente pela sociedade.[2]
Posteriormente, não era exatamente o problema das fontes do direito que passavam a ocupar as teorias sociológicas do direito (até porque no meio jurídico já estaria sedimentado a proposta do direito formal, estatal), mas sim suas funções. Diante da transformação para o Estado Social, qual o impacto que o direito sofreria em seus objetivos, dada sua natureza de subsistema da sociedade contemporânea. Isso explicaria o rápido desenvolvimento da teoria funcionalista do direito.
O interesse na função social do direito também cresceu à vista das teorias marxistas que acrescentou à sua definição de ordenamento coativo, sua função de perpetuar o domínio de classes.
Esse foi um espaço vago que deixou a teoria de Kelsen. Diante do seu rigor científico na definição do objeto do direito na norma jurídica, a definição oferecida parou no conceito de ordenamento coativo. A função oferecida para o direito nessa perspectiva seria a paz, a ordem e a segurança coletiva nas relações internacionais. Mas não havia definição que qualquer conteúdo específico, sendo apenas um instrumento para as mais diversas funções. Seria apenas o modo pelo qual os fins, sejam quais forem, sejam alcançados. Acreditava-se ser o elemento característico da teoria do direito na estrutura do ordenamento jurídico como sistema dinâmico, sem a necessidade de objetivo para sua definição.
Bobbio relaciona essa falta de conteúdo com teorias do Estado que jamais admitiram sua finalidade, limitando-se apenas a descrever seus elementos constitutivos. Na verdade, trata-se de relação passível de ser feita com o paradigma do poder legal-racional, pelo qual se induzia a concentrar atenção dos processos de organização nos instrumentos que nos problemas de ordem axiológica e sociológica, tal como sugerido por Weber.[3]
Diante da ausência de um fim específico propunha o direito como mero instrumento, cuja apropriação estaria ao alcance de qualquer ideologia.

3. A análise funcional do direito depende do questionamento de determinados pressupostos de estudo da matéria.

a) Uma das características das sociedades tecnocráticas seria a progressiva perda de função repressiva do direito (processo de desjuridificação). Duas são as linhas de argumentação importantes nesse sentido:
[i] integração social através da ampliação dos meios de comunicação em massa (condicionamento do comportamento coletivo): isso passa pela socialização (adesão a valores estabelecidos e comuns) e imposição de comportamentos considerados relevantes para a unidade social (repressão dos comportamentos desviantes). São relacionados aos meios institucionalizados de poder: ideológico e político. Na medida em que o consenso, mesmo manipulado, avança, diminui a necessidade da repressão jurídica.
[ii] aumento dos meios de prevenção social: o desenvolvimento da prevenção no direito como na medicina tenderia a impedir o número de conflitos a partir de uma auto-regulação social. Nesse caso, o direito subsistiria na forma de normas de organização dos meios sociais que substituiriam a repressão. Com isso, entra em declínio a tradição que entende ser o estado de natureza, como situação sem direito, equivalente a destruição dos homens. Impede a noção de progressividade da história no sentido de que quanto mais presente o Estado ou o direito, mais evoluída seria a sociedade examinada.

b) O funcionalismo é teoria que se propõe a entender o sistema social tal como um organismo considerado como um todo. Parece que tal tipo de análise não concebe instituições sem uma função positiva. No máximo, concebe o funcionamento defeituoso (disfunções) que poderiam ser corrigidas. A função negativa exigiria a transformação do sistema.
O direito, como uma das partes do sistema social considerada em função do todo, detém uma função positiva primária já que é instrumento de conservação por excelência. É o subsistema do qual depende em última instância a integração do sistema, para além do qual há inevitável desagregação do sistema.
Do ponto de vista da mudança do sistema, o direito também ocupa lugar de destaque mudando a ordem vigente e adaptando-a as mudanças sociais (prova disso é a possibilidade leis atualizadas substituírem defasadas). Bobbio sugere que esse papel pode ser desempenhado pelo direito por ter também uma função negativa que atua tanto quando o direito se adianta à mudança social, quanto no caso em que tutela um conflito posteriormente a sua verificação.

c) Qual ou quais as funções do direito? Não é nova a análise que postula para o direito uma função distributiva, conferindo a membros do grupo social recursos econômicos e não-econômicos. Relaciona-se o exemplo do historiador do direito James Williard Hurst, de origem americana. Tal autor já destacava em sua obra o estímulo e apoio que o direito pode conferir, alem da possibilidade de alocar recursos.[4] Na verdade identifica que qualquer grupo social é, além de prevenir conflitos e resolvê-los, distribuir recursos disponíveis.
Tais funções identificadas ganham papel ainda mais proeminente no Estado Social. Essa função do direito não foi tradicionalmente reconhecida diante do peso fortíssimo exercido na cultura ocidental em que o Estado e o direito restringir-se-iam a um papel mínimo ante a esperança de auto-regulação da economia e da sociedade. O direito teria o papel de facilitar o estabelecimento das relações privadas, garantir sua continuidade e segurança e impedir a dominação recíproca.
Prova dessa longa tradição jurídica é a permanente relação que se faz entre direito e moral (nunca à economia), pois ambas teriam função de garantir a estabilidade e a segurança das relações inter-individuais. Mesmo definições doutrinárias modernas destacam apenas esse caráter protetivo-repressivo (conjunto de regras de conduta individual, resolução de conflitos, reparação de erros e repressão de atos desviantes).

d) Enquanto a função repressiva do direito repousa sobre a ameaça de sanção, a função promocional atinge seus desígnios mediante premiações. Jhering já concebia essas formas de ordenação social como recompensas e penas, mas identificava a primeira como privativa da economia e a segunda da esfera jurídica. A técnica jurídica de cumprimento faria toda a diferença na caracterização das funções do direito.

4. Tal análise do direito está totalmente desvinculada dos estudos e preocupações que regeram o estudo do direito até então e impediram que essa perspectiva se desenvolvesse de maneira a entender suas transformações oriundas da sociedade.
É assim que a sociologia do direito passa a desempenhar papel decisivo, pois: [i] são problemas que requerem a consideração do direito no todo social (como subsistema de um sistema), requerendo o estudo das relações entre direito e sociedade, que permitem perceber e avaliar as transformações do direito; [ii] além disso, para avaliar as transformações de função do direito é preciso recorrer a técnicas de pesquisa empírica próprias das ciências sociais.
É necessário, entretanto, explicitar algumas dificuldades de ordem teórica para esse tipo de abordagem, especialmente com o esclarecimento de seus conceitos, no intuito de eliminar confusões terminológicas. A expressão “função do direito” apresenta em si diversas dificuldades.

[a] A palavra função dentro dos limites nas teorias sociais poderia ser entendida em relação à [i] sociedade como totalidade, como sistema de equilíbrio; ou em relação aos [ii] indivíduos que são partes componentes dessa totalidade, que interagem entre si e com o todo. É lícito combinar as proposições, mas não ignorar sua existência.
Quem afirma que a função do direito é a integração social, aborda o problema da função do direito do ponto de vista da sociedade no seu conjunto; se se aborda a questão aduzindo que a função do direito é tornar possível a satisfação de algumas necessidades fundamentais do homem, identifica-se o ponto de vista do indivíduo.
Tais abordagens na verdade traduzem uma concepção de sociedade, valores e indivíduos e tendem a prestigiar o núcleo central de cada concepção.
Ocorre que as funções enumeradas nem sempre representam o mesmo grau de influência nas sociedades analisadas. Há diversidade de fins específicos identificados pelo direito que variam conforme as contingências. Trata-se de lógica idêntica àquela da relação meio-fim (o fim, uma vez alcançado torna-se meio para realização de outro fim). Assim resta difícil encontrar critério para uma finalidade ontológica. Bobbio recorre à divisão entre ser e dever-ser para separar as perquirições de sociólogos e antropólogos (funções específicas) e do filósofo (função ontológica).

[b] Na expressão identificada, também o termo direito apresenta recomendações para seu correto entendimento. [i] Nem todos que se dispõem a fazer uma análise funcional entendem direito da mesma forma; [ii] mesmo que houvesse consenso quanto ao direito referido, seria muito difícil que uma única versão do conceito pudesse ser aproveitada para todas as possibilidades de abordagem.
[i] Prova da diversidade das acepções de direito são os atributos que lhes são conferidos pelos defensores da análise funcional. São relacionadas as funções repressiva em contraposição a distributiva, e ao mesmo tempo a contradição entre função de conservação (estabilização) e inovação. Tais atributos são legítimos mas sem qualquer correspondência entre si. Devem ser explicados por significado diverso do substantivo ao qual se referem.
A primeira distinção (repressão x distribuição) se refere aos remédios empregados pelo direito para exercer sua função primária de condicionar o comportamento do grupo social. A segunda (conservação x inovação) se refere aos resultados obtidos, considerada a sociedade em seu todo. A primeira observa como o direito opera. A segunda observa aquilo que as regras prescrevem ou permitem, bem como sua eficácia. Para analisar o primeiro é preciso tomar em conta o remédio. Para analisar o segundo necessário consideraras providências concretas impostas ou solicitadas.
Assim, o problema da função do direito abre caminho para duas respostas diferentes, considerados os diferentes critérios de abordagem.
[ii] O direito é tão vasto que uma análise funcional que não proceda às devidas distinções se torna de escassa utilidade. Há várias possíveis e o texto ocupa-se de três que reputa emblemáticas: direito privado/direito público; normas de conduta/normas de organização; normas primárias/normas secundárias.
A primeira distinção (privado x público) é necessária a medida que desenvolvem diferentes funções no interior do sistema jurídico, distinguindo as duas principais funções atribuídas ao ordenamento jurídico (permitir a coexistência de indivíduos por regras de equalização e solução de conflitos; ou função de direcionar interesses divergentes identificando objetivos comuns).
Outras análises, segundo Bobbio, são possíveis e devem seu nascimento (ainda que inconsciente) à análise funcional porque recorrem aos objetivos das normas para defini-las e não outros modelos como raciocínio e conteúdo.
É tradicional a referência a normas de conduta, para regulamentar a convivência entre indivíduos de modo a possibilitar que cada um busque seus próprios fins. Normas de organização buscam tornar possível a cooperação entre indivíduos para atingirem fins comuns.
No caso das normas primárias e secundárias é notório que H. L. A. Hart recorre a critérios funcionais para diferenciá-las e desmembrar as espécies de normas secundárias (normas de reconhecimento, mudança e juízo). Explica a estrutura partindo da função.

5. Essas são algumas das armadilhas enfrentadas por aqueles que se propõem a estudar a análise funcional do direito, buscando na especificidade da função do direito seu elemento característico. As tentativas nesse sentido, segundo Bobbio, ou não logram êxito em apresentar conclusões, ou simplificam indevidamente o fenômeno (acusação que faz à Luhmann com sua proposta de atribuir ao direito o papel exclusivo de estabilização das expectativas sociais). Esse mesmo fenômeno ocorreu com as demais teorias que ou se revelavam demasiado específicas ou demasiado genéricas. Ao final, Bobbio pugna pelo avanço de ambas as formas de análise que, se não são passíveis de serem integralmente combinadas podem andar lado a lado sem que uma obscureça a outra.

[1] As obras representativas dessa fase da vida intelectual de Bobbio são: Teoria da Norma Jurídica e Teoria do Ordenamento Jurídico, em que faz a transição da consideração individual da norma para uma consideração geral do corpo legislativo: “O direito é assim essencialmente composto dos enunciados do legislador (discursos) que tratam de esclarecer – a purificação da linguagem legislativa estando ao lado de uma interpretação lógico-gramatical da norma jurídica – a fim de determinar as condições factuais de aplicação, de preencher as lacunas e sistematizar os enunciados para formar um todo consistente (eliminação de antinonímias)” (Billet e Maryioli, 2005, p. 450). Em 1967 Bobbio passa a atacar alguns dos pressupostos que erigiu anteriormente, conforme identificado na conferência Essere e dover esser nella scienza giuridica”. A partir desse escrito passou a atacar o postulado positivista de que o conhecimento jurídico seria objetivo, de caráter puramente descritivo. Entende a partir de então que o raciocínio jurídico, como o do historiador, é um julgamento de avaliação de cunho pragmático.
[2] Relaciona-se como referência desse pensamento o russo-francês Georges Gurvitch, cujo método sociológico ligava a produção do direito à aceitação da comunidade social de onde emerge. Apostava numa diminuição do Estado e a reabsorção de funções que lhes foram atribuídas à sociedade. Bobbio atribui a perda de interesse nessa teoria ao movimento oposto que o Estado tomou na história a partir de então.
[3] Max Weber em Economia e Sociedade, Vol. I. É possível relacionar esse modelo social às considerações de Kelsen sobre o direito. O formalismo seria uma extensão dessa visão das instituições sociais.
[4] Nessa parte Bobbio cita estudos de Vilhelm Aubert (The social function of Law) e de F. Lombardi (La lógica dell’esperienza di J. Williard Hurst).


Referência: BOBBIO, Norberto. Análise funcional do direito em Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Manole, 2006.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Segunda Fase da Reforma do Judiciário

Caríssimos,

Ando meio sem tempo para atualizar o blog. Para não deixar julho passar em branco, resolvi compartilhar com vocês uma notícia interessante, lançada pelo jornal Valor Econômico na internet (http://www.valoronline.com.br/valoreconomico/285/legislacaoetributos/legislacaoetributos/Reforma+do+Judiciario+tera+segunda+fase,08257,,86,5058408.html?highlight=08257&newsid=5058408&areaid=86&editionid=2058). Trata-se de reportagem que informa sobre s discussões correntes no Congresso Nacional sobre uma possível continuação da Reforma do Judiciário.

Os pontos em destaque não são novidade porque já vêm sendo suscitados há muito, de um jeito ou de outro. Não discordo da pauta, mas acho que os temas selecionados são tratados de maneira equivocada, especialmente a questão da celeridade, a qual tratei algumas postagens atrás a propósito de um comentário do amigo André Rocha.

Destaco também a leitura que vem sendo feita sobre o papel das ações coletivas no sistema jurídico brasileiro. Conforme relata a matéria, para alguns dos principais envolvidos nos estudos da Reforma, a ação coletiva visa exclusivamente a celeridade para o julgamento de processos judiciais.

Seguir esse caminho é perder o rumo do que a jurisdição coletiva significa. Tal mecanismo de tutela jurisdicional apenas acidentalmente proporciona celeridade. Seu objetivo principal é por ao alcance do Judiciário - e portanto do direito - discussões sobre a efetivação de direitos coletivos, o que ganha cada vez mais corpo na doutrina jurídica e na jurisprudência brasileira. Trata-se de tentar evitar um caminho que é necessário trilhar, nem que seja como tentativa.

Venho falando disso nas postagens anteriores. Vocês já conhecem minhas influências. Gostaria de ouvir quais as impressões de vocês sobre a Reforma do Judiciário e os caminhos que ela deveria seguir. Não precisa ser uma análise geral, mas para lembrar temas importantes que vocês gostariam de ver abrangidos dessa vez.

Participem! Debatamos!

Reforma do Judiciário terá segunda fase
Luiza de Carvalho, De São Paulo25/07/2008

Após quatro anos da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, o Ministério da Justiça começa a definir quais serão os temas abordados na segunda fase de implementação da reforma do Judiciário. O órgão estabeleceu um pacto com entidades que representam magistrados para elaborar a proposta da continuidade da reforma, que deve ser encaminhada até o fim do segundo semestre ao Congresso Nacional. Entre os assuntos abordados nessa etapa estão a elaboração de um plano para dar mais celeridade processual e fortalecer instituições públicas da Justiça. Também está em pauta a regulamentação do papel das comissões parlamentares de inquérito (CPIs) e o uso da chamada Lei do Grampo.
Desde que foi concluída a primeira etapa, tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 358, que reúne o restante da reforma. No entanto, de acordo com o secretário especial da reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Rogério Favretto, o pacto agora estabelecido abrange muitos outros tópicos que não estão incluídos na PEC. "Enquanto a PEC tramita no Congresso, a estratégia é resgatar temas que ficaram pendentes na primeira fase", diz Favretto.
Na primeira reunião do Ministério da Justiça com as entidades de magistrados, esses assuntos foram divididos em três blocos. O primeiro está direcionado à elaboração de um conjunto de leis que possibilite mais celeridade processual em âmbito penal, civil e trabalhista. Para tratar deste último, foi designada uma comissão formada por magistrados da área para aperfeiçoar a fase de execução trabalhista e discutir as novas modalidades de relações de trabalho, como a prestação de serviços, que carecem de uma regulamentação mais específica. Um dos grandes projetos deste bloco é definir um rito especial de tramitação para as ações coletivas. Já existe um anteprojeto de um código para essas ações, mas, segundo Favretto, ele se mostrou inviável e alterações pontuais terão mais chance de êxito. "Acreditamos que as ações coletivas colaboram para reduzir a litigiosidade", diz Favretto.
No segundo bloco de assuntos do pacto estão alguns temas denominados "macrojudiciais" - por exemplo, a regulamentação do papel das CPIs e o uso da chamada Lei do Grampo, que permite a interceptação de comunicações telefônicas e informáticas. Outro ponto acolhido é o debate sobre a elaboração de uma lei de abuso de poder, que está sendo negociada com partidos políticos e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Por fim, a proposta da segunda fase da reforma do Poder Judiciário abarca, em seu terceiro bloco, o fortalecimento de políticas públicas que não exijam a alteração de leis. As prioridades neste bloco são rediscutir o sistema penitenciário - principalmente no que tange às penas alternativas -, e o fortalecimento da defensoria pública. As entidades que representam magistrados devem apresentar suas sugestões ao Ministério da Justiça até o dia 8 de agosto.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Participação Individual e Representação de Interesses na moderna Tutela Processual

Dedicado à memória de Gilberto Guimarães, brother in arms.


Após meu último post, alguém poderá estranhar as idéias que proponho quando afirmo que a participação individual não é a única forma de legitimação das decisões da atuação judicial, havendo uma tendência para a objetivação das discussões dessa natureza. Ainda que seja apenas um esboço de pensamento, explicações são necessárias para justificá-lo em alguma medida.

Imperioso ter atenção para algo que poucas vezes é lembrado no estudo do processo judicial, que é sua indelével vinculação com ideais políticos. O direito processual não difere dos outros ramos jurídicos que constituem desdobramento da ideologia que conforma Estado e sociedade.

A combinação de ideais tradicionalmente liberais com aquilo que se concebe atualmente como democracia torna a participação do indivíduo é muito valorizada. Essa é uma concepção muito cara à filosofia política por vincular a legitimação do poder ao seu destinatário.

Nessa toada, a idéia de direitos individuais correspondeu a uma organização estatal, um Judiciário, uma tutela processual voltada esse paradigma jurídico identificado com a idéia de legitimação através participação dos interessados.

A ideologia estatal e as instituições constituídas há muito vêm sofrendo impacto do desenvolvimento da sociedade, sentindo a necessidade de serem reinventadas. Normalmente são aceitas na medida em que se amoldam à tradição liberal, que tem clara influência na constituição do Estado ocidental.

O reconhecimento dos direitos coletivos e difusos e das necessidades coletivas em face do direito individual apontam o caminho da reinvenção dessas instituições. O direito não mais se volta apenas aos indivíduos, mas também à coletividade, com a missão de promover ambos de forma igualmente eficaz.

Esse movimento histórico não mais representa qualquer novidade para o jurista, mas tampouco significa que se atingiu um nível ideal de maturidade para promoção desses direitos. A realidade que daí emerge reflete um trabalho crescente exploração dos limites teóricos e práticos do Estado, no sentido de buscar a configuração que melhor sirva aos novos objetivos incorporados.

É assim que são propostas novas formas de organização institucional, especialmente em relação ao Judiciário, pelas quais se lhe atribuem novos papéis.

Owen Fiss é um dos que propõem de maneira coerente essa reorganização institucional. Já a expusemos num post anterior (Presenting Owen Fiss, de 09 de dezembro de 2007), em que o autor propõe um Judiciário com missão de reforma estrutural do aparelho estatal.

Ainda que não se aceite a proposta de Fiss, é inegável que a Jurisdição sofreu transformações quanto aos assuntos que aborda e, assim, em sua forma de proceder. Ao se admitir que se pronuncie sobre questões de relevância para toda a sociedade, é imperativo que busque formas de legitimação compatíveis com seus atos, cada vez mais afastadas do esquema tradicional.

O processo judicial, nessa perspectiva, também sofre impactos, também depende de novas propostas para desempenhar com um mínimo de coerência e razoabilidade seu novo papel.

O problema da legitimidade das decisões judiciais em matéria coletiva é uma das principais questões que atingem o processo judicial: como pode uma decisão judicial gerar efeitos para todos quando há apenas a participação de alguns poucos no processo?

O texto abaixo trabalha especificamente essa questão, propondo a legitimação das decisões judiciais a partir da representação de interesses em juízo. Trata-se da idéia de contraditório em que se garante o day in court para todos os interesses envolvidos, sem que todos os interessados sejam ouvidos (segundo o autor, preservando o elemento essencial ao contraditório).

Nesse passo, essa postagem se relaciona com a anterior porque é essa noção de contraditório por representação de interesses que possibilitaria a objetivação das discussões judiciais.

Convido o leitor a prestar atenção nesse texto, observando a argumentação do autor em relação ao contraditório através da representação de interesses no sistema jurídico americano. Seria possível leitura similar para o direito brasileiro? Outra interessante questão é notar a relação entre representação de interesses e coisa julgada, na medida em que o autor critica a possibilidade de impugnação da decisão obtida via representação de interesses com base em critérios de legitimidade pela participação.

Gostaria de ouvi-los sobre esses assuntos. Considero indispensável a participação de todos.


A Sedução do Individualismo (Owen M. Fiss)

1. A reforma estrutural desenvolvida para conhecer de casos destinados à afirmação de direitos constitucionais, utilizava-se de injunction para se fazer efetiva e cumprir sua função de reestruturar organizações. Foi desenvolvida na era dos direitos civis para sua afirmação nos anos de 1950, apesar de ter sido utilizada em outros tipos de direitos com o desenvolvimento do modelo de adjudicação.

A partir de 1974, com a assunção do William Rehnquist à presidência da Suprema Corte, a reforma estrutural e a injuction correspondente sofreram diversos ataques passando a ser exceção enfraquecida.

O texto se refere a um dos mais contundentes ataques à reforma estrutural: o caso Martin v. Wilks[1]. Havia uma decisão proferida e executada para reestruturação de um departamento de bombeiros cuja política racial impedia o ingresso de negros. Após tal execução, a Suprema Corte autorizou o processamento de ação movida pelos bombeiros brancos, que não haviam participado do primeiro processo, para questionar a reestruturação a qual teria criado uma política discriminatória contra o grupo que representavam.

Esse precedente deixa todos os processos referentes à reforma estrutural passíveis de rediscussões e vulneráveis a ataques indiretos. Curioso é que a Corte não possibilitou essa mesma revisão em matéria criminal, ressaltando a importância do encerramento do processo e eficácia da decisão, os mesmos valores que não prestigiou para a reforma estrutural.

2. A importância da decisão é relacionar valor individual de acesso ao judiciário (day in court) aos valores que são objeto de consideração pelo processo de reforma estrutural. O cerne da questão é o direito de participação: será que é capaz de infirmar o projeto de reforma estrutural? Rehnquist entende que, embora reconheça o impacto negativo de sua decisão em perpetuar discussões, afirma ser obrigado a fazê-lo com base na disposição das leis americanas às quais estaria vinculado.

Embora a questão tenha encontrado novo cenário na Lei dos Direitos Civis de 1991, na qual se teria procurado alterar o resultado de Martin v. Wilks, Fiss entende importante opor-lhe argumentação constitucional para confrontar a questão em face do devido processo legal, pois o fundamento usado para analisar o caso identificaria no day in court uma profunda tradição histórica superior até mesmo à regulamentação legal.[2]

3. Se a forma de resolução do caso fosse feita através de acordo, o autor estaria disposto a aceitar a tese de Renhquist, porque a legitimação do acordo passa pelo consentimento de indivíduos ou grupos dispostos a ceder em face de uma situação de interesse próprio cujas variáveis é impossível medir. Assim, admitiria questionamento de quem não tivesse feito parte do acordo.

4. As considerações, entretanto, não se restringem ao acordo. Ao contrário, afirma que uma pessoa não pode ser privada de seus direitos subjetivos em razão de um processo do qual não foi parte. Os motivos seriam aplicáveis a qualquer caso julgado. Assim, ainda se a ação afirmativa tivesse sido julgada procedente em favor dos bombeiros negros com conseqüências específicas em relação à atuação do departamento de combate ao incêndio, privilegiando contratação e promoção de negros como compensação por anos de discriminação, mesmo assim, seria passível de questionamento por qualquer um que se julgasse prejudicado pela medida.

Mesmo que se considere que o caso estaria submetido ao stare decisis (vinculação pelo precedente), não estaria submetido ao collateral stoppel ou issue of preclusion (coisa julgada). Isso impediria a efetivação da medida e a deixaria sempre em aberto diante da multiplicidade de interessados num caso de reforma estrutual.

5. A argumentação de Rehnquist parece tentar minimizar a questão, pugnando por uma participação mais completa e cuidadosa, sem tecer considerações sobre a viabilidade disso e, assim, tapando o sol com a peneira. Nem o próprio consegue identificar quais seriam os participantes, pois ora se refere aos que poderiam ser afetados pela decisão de modo abrangente, ora aos privados em seus direitos subjetivos. Mesmo a interpretação restritiva seria absurda porque não parte da idéia de tutela dos interesses, mas sim da participação individual. Além disso, uma vez que a reforma estrutural e suas injunctions detêm caráter prospectivo, seria impossível prever quem deveria fazer parte desse litisconsórcio.

Fiss acredita que não há garantia de um direito a um dia na corte, mas o direito à representação adequada do interesse na corte. Nenhum indivíduo poderá ser obrigado por qualquer decisão judicial, a menos que seu interesse esteja adequadamente representado no processo. No processo de reforma estrutural, o que interessa é que todos os interesses estejam adequadamente representados, na falta do que estará aberto à nova impugnação. Contrapõe-se o direito de participação de Rehnquist ao direito de representação de Fiss.

6. Na proposta de Fiss, em face de um processo estrutural passado em julgado, seria possível impugná-lo em processos subseqüentes apenas no referente à representação. Isso poderia causar atrasos na efetivação, podendo ser evitado se a representação for criteriosamente avaliada no processo inicial o que seria quase impossível por ter de prever quais seriam os atingidos. Não se poderia fechar peremptoriamente processos posteriores. Essa dificuldade do regime de representação é que tem informado pensamentos que entendem a diferença entre um e outro ser meramente técnica. Mas isso não é verdadeiro. O ônus da tese de Fiss é incomparavelmente menor que a de Rehnquist.

7. A consideração tal como posta pelo professor Fiss teria impacto diretamente também em relação a outros institutos como a notificação, a qual não seria dirigida a todos os interessados, mas aos representantes dos grupos possivelmente interessados. O desenvolvimento do processo, aliás, pode dar ensejo a uma segunda rodada de notificações, especialmente no estágio da efetivação das medidas judiciais em que apareçam outros interessados. Ao contrário do precedente de Eisen v. Carlisle & Jacquelin, bastaria a notificação de boa quantidade de membros do mesmo grupo de interesses para que seja bem representado.

Outro instituto atingido seria a intervenção: apesar de poder causar multiplicidade de partes como o litisconsórcio, é mecanismo de participação diferente em 3 importantes aspectos: [a] o ônus desloca-se da ação para os impugnantes desde que a notificação seja adequada; [b] intervenção exigiria especial fundamentação e condicionada à demonstração que o interesse inscrito não está adequadamente representado, não havendo necessidade de permitir que todos participem; [c] a intervenção é destinada a melhorar a representação, o litisconsórcio é ambíguo quanto ao seu propósito e incontrolável por franquear indiscriminadamente a participação.

Ainda que a representação constitua a participação de um número grande de intervenções, e se assemelhe a uma convenção municipal no contexto de uma determinada ação, ainda assim, é mecanismo superior ao litisconsórcio que coloca sobre o autor o ônus incluí-lo.

8. O entendimento defendido por Fiss e incorporado na lei de 1991 não significa abandonar os direitos individuais, reafirmados em Roe v. Wade.[3]

Algumas formas de representação são inteiramente coerentes com valores individuais como no mandato, em que o mandante tem controle sobre o mandatário. Fuller afirma que a representação eleitoral também é adequada aos valores individuais, apesar do poder do eleitor depender de vários fatores.

A representação da reforma estrutural difere qualitativamente dessas outras: é representação de interesses que não envolve investidura. Apesar de parecer estranha a uma sociedade democrática baseada no consentimento, ocorre em diversas ocasiões sendo normalmente reconhecida: família, religião organizada, universidades, onde os representantes não são escolhidos. Assim também nos regimes comunistas cidadãos eram representados por grupos pequenos sem processo de escolha. No direito americano também se verifica isso no common trust[4] e nas class actions.

No caso das class actions, uma notificação é enviada aos membros de um grupo maneira a verificar a adequação da representação, pois a ação, que tem por objetivo proporcionar enforcements a leis públicas, vinculará todos os seus membros.

O precedente Eisen que obriga a notificação de todos os envolvidos não se aplica a todos os regimes da class action, referindo-se somente a tutela coletiva de direitos individuais FRCP, rule 23, (b) (3). Desta feita, não intenta contra a possibilidade de representação porque fundamentada na FRCP e não no devido processo legal.

9. Em todos esses exemplos sociais, políticos ou jurídicos, identifica-se a representação de interesses com o propósito de alcançar valorosos objetivos pragmáticos. Permite-se a representação de interesses para tornar a reforma estrutural e sua injunction viável. O compromisso com valores individuais não pode ser tamanho que inviabilize uma tutela necessária à atualidade. A importância da participação do indivíduo é inegável mas tem de ser identificada nos diferentes contextos.

Em casos como de direito penal a participação individual torna-se essencial como valor supremo diante da particularidade da situação, compromisso com a dignidade individual e valorização da fiscalização instrumental.

No litígio estrutural, por outro lado, indivíduos não são singularizados; as medidas são orientadas para o futuro; organização é examinada a partir do impacto que desempenha sobre o bem-estar social de um grupo. Assim o valor participação resta diminuído nesse tipo de processo. Em verdade, serve mais a fins instrumentais que para preservar a dignidade, pois a finalidade é assegurar tutela de interesses e que argumentos fortes sejam sempre formulados.

10. Por fim, Fiss vislumbra a possibilidade de se apresentar o seguinte argumento sobre o direito de participação: essa seria parte da esfera inalienável de direitos individuais que não podem ser subjugados em hipótese alguma nem para beneficiar a sociedade inteira.

Entretanto, o devido processo legal é princípio que compreende tanto a situação individual quanto a situação coletiva. Não pode ser reduzido a uma concepção de individualismo que desconsidere as conseqüências sociais da regra procedimental, buscando acomodar direitos tanto dos bombeiros negros, quanto dos bombeiros brancos.

Não há uma ponderação com o princípio do devido processo legal que o desvincule dos direitos civis, mas uma concepção que compreenda sua dimensão democrática necessária.

[1] 490 US 755 (1989)
[2] O precedente citado é Chase National Bank v. Norwalk.
[3] 410 US 113 (1973). Precedente que substitui Brown como referência de organização central do direito americano.
[4] Caso Mullane v. Central Hannover Bank & Trust Co. 339 US 306 (1950). Trust é instituto americano no qual algúem (trustee) é formalmente investido na propriedade de um ou vários bens exercendo o direito em benefício de uma ou várias pessoas indicadas pelo instituidor. Common trust é a modalidade coletiva dessa figura. Caso descrito no livro da p. 223 a 226.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Objetivação das Discussões Judiciais

Ao ler a lei 11.672/2008 (abaixo transcrita), algo me ocorreu que gostaria de compartilhar e ouvir a comunidade jurídica a respeito. Enxergo nessa nova lei a confirmação de uma tendência que pode modificar em muito a aplicação do direito através do processo: a objetivação das discussões judiciais.

A lei estabelece que, no âmbito do STJ, os processos individuais que tem por objeto teses jurídicas idênticas podem ser julgados de uma única vez a partir de um ou mais casos que representem a questão submetida ao tribunal. No fundo isso significa que não é tão importante como uma pessoa apresenta seu caso ao Judiciário, apenas que esse analise os argumentos apresentados e decida a questão.

Essa forma de julgar é parecida com o mecanismo de controle concentrado de constitucionalidade no sentido de que se tenta criar um espaço público mais amplo das discussões jurídicas, ainda que considerada a diferença dos mecanismos de tutela (questões abstratas vs. questões concretas).

Normalmente, somente se analisa essas medidas da perspectiva da celeridade que podem acarretar aos tribunais. Mas a questão é muito mais profunda.

Há uma evidente repercussão política desse caminhar do processo brasileiro. Em minha opinião, considerando o conceito de liberdade individual depreendido do direito de ação e considerando a restrição feita ao corolário recursal, se está deixando o paradigma liberal clássico para passar a considerar mais abrangência no espaço público, segundo paradigmas liberais igualitários (Rawls/Dworkin) ou republicanos.

Isso não é mero dado acadêmico! Dizer que o direito de ação passa a se submeter a um controle pelo espaço público é muito mais do que imposição do número de processos, é conferir um papel maior e mais importante às instituições, que para isso precisam de esquemas de legitimação diferentes e mais elaborados que os atuais.

Nesse contexto, a legitimação do pronunciamento judicial não decorre mais exclusivamente da participação direta de todos aqueles que têm problemas em processos individuais, mas da apresentação de argumentos a serem submetidos ao escrutínio público.

É por isso que vemos as ações individualmente propostas sobre questões jurídicas idênticas serem sobrestadas e decididas sem um exame particular de cada argumentação. É por isso que são permitidas decisões contrárias ao STJ pelos tribunais locais, se argumentos novos argumentos relevantes à discussão pública são apresentados. O que importa não é mais a participação de cada um, mas o que se acrescenta à discussão pública.

Esse aspecto normalmente ignorado pelos juristas é decisivo para os rumos da aplicação do direito no Brasil, pois tem um potencial de conseqüências enorme em diversos outros mecanismos processuais, como às ações coletivas.

Se a objetivação das discussões judiciais é presente por condições políticas favoráveis, as ações coletivas ganham enorme importância porque representam instrumento poderoso para cumprir esse desiderato. Através dela, é possível abrir diálogo com o poder público sobre diversas questões diferentes e de enorme repercussão, fazendo do Judiciário potente elemento de construção e reconstrução do direito.

Na atualidade, o direito brasileiro parece utilizar duas técnicas para a objetivação das discussões jurídicas: valorização do precedente para questões concretas e a discussão em tese de questões abstratas. Acredito que a técnica processual coletiva também faz parte desse quadro, apesar de um tanto negligenciada porque não compreendida nesses termos.

Que vocês acham?

LEI Nº 11.672, DE 8 MAIO DE 2008.

Acresce o art. 543-C à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, estabelecendo o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 543-C:

"Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo.

§ 1o Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça.

§ 2o Não adotada a providência descrita no § 1o deste artigo, o relator no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.

§ 3o O relator poderá solicitar informações, a serem prestadas no prazo de quinze dias, aos tribunais federais ou estaduais a respeito da controvérsia.

§ 4o O relator, conforme dispuser o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia.

§ 5o Recebidas as informações e, se for o caso, após cumprido o disposto no § 4o deste artigo, terá vista o Ministério Público pelo prazo de quinze dias.

§ 6o Transcorrido o prazo para o Ministério Público e remetida cópia do relatório aos demais Ministros, o processo será incluído em pauta na seção ou na Corte Especial, devendo ser julgado com preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.

§ 7o Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem:

I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou

II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.

§ 8o Na hipótese prevista no inciso II do § 7o deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial.

§ 9o O Superior Tribunal de Justiça e os tribunais de segunda instância regulamentarão, no âmbito de suas competências, os procedimentos relativos ao processamento e julgamento do recurso especial nos casos previstos neste artigo."

Art. 2o Aplica-se o disposto nesta Lei aos recursos já interpostos por ocasião da sua entrada em vigor.

Art. 3o Esta Lei entra em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua publicação.

Brasília, 8 de maio de 2008; 187o da Independência e 120o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Tarso Genro

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Legitimidade Institucional nas Ações Coletivas: Efeito Carona e Participação de Interessados

Os bens coletivos são caracterizados por sua indivisibilidade (fruição do bem por um agente não impeça a dos demais em qualidade e quantidade equivalentes) e caráter público (não admitem parcelamento para apropriação privada).

A defesa em juízo desses bens coletivos encontra um problema operacional quando relegada ao patrocínio de indivíduos: na maioria das vezes o desequilíbrio entre o proveito individual que proporciona ao autor não é compatível com os custos de propositura. Isso porque os custos envolvem gastos para reunir o maior número de pessoas possível, de obter conhecimento técnico e científico para compreender a situação, divulgação dos problemas levantados, contratação de profissionais capacitados, etc.

Tal incompatibilidade gera o chamado efeito carona (ou free riding), onde os custos para a defesa do bem são limitados a uma pessoa, mas o benefício é difuso na sociedade. Mesmo quem não concorre para tutela dos bens é beneficiado. Essa conseqüência cria ambiente contrário à tutela coletiva, porque haveria um impulso natural para imobilidade dos agentes.

Essa não é uma barreira intransponível, quando consideradas as motivações ideológicas sempre presentes na tutela coletiva. Mas trata-se de uma barreira econômica importante, sempre colocada na balança na hora de se propor medidas de interesse coletivo.

Esse é um sério problema para o sistema americano de ações coletivas, baseado na propositura da ação por indivíduos. Para solucioná-lo utiliza-se um sistema de incentivos a que propõe a ação: as verbas de sucumbência, regularmente altas, são pagas pelo réu em benefício do autor e advogados, de maneira que recebem por prestar serviço ao grupo social. Além disso, tenta-se reduzir os custos da ação para tornar interessante sua propositura.

O sistema legal brasileiro é diferente por usar de mecanismos públicos (entidades estatais e Ministério Público) e privados (associações privadas) para defesa de direitos coletivos.

A prevalência da defesa através de ações judiciais movidas por órgão público no Brasil se deve a avaliação econômica do custo, mais facilmente suportado pelo Estado que pelo particular. Tanto assim é que o número de ações coletivas propostas pelo Ministério Público é infinitamente maior do que aquelas propostas por entidades privadas.

Os mecanismos públicos de defesa dos interesses sociais funcionam como um redutor de custos, amenizando o efeito carona.

Apesar dessa ser uma boa razão para atribuir aos entes públicos legitimidade para propositura ações coletivas, é necessário avaliar quão legítimo é esse mecanismo.

A conta de diferenças de impacto e percepção social sobre o bem coletivo a mera legitimação institucional não protege necessariamente os direitos coletivos.

Dessa forma, ao se optar pela legitimação institucional é imperativo criar meios de controle de atuação, franqueando participação da sociedade nos processos internos de decisão. A legitimidade processual não pode ofuscar a legitimidade política da defesa do bem comum.

Sugestão de Leitura:

SALLES, Carlos Alberto de. Proteção judicial de direitos difusos e coletivos: funções e significados in Processo civil e interesse público: o processo como instrumento de defesa social. Organizador Carlos Alberto de Salles. São Paulo: RT, 2003, p.131-137

terça-feira, 29 de abril de 2008

“A arte de ter razão”, de Arthur Schopenhauer

I. Antes de mais nada.

A busca da verdade e a busca da persuasão não trilham necessariamente os mesmos caminhos. Não são poucas vezes em que somos persuadidos, ou presenciamos a persuasão de outrem, por estratégias argumentativas cuja finalidade é apenas ludibriar. Exemplos graves podem surgir na prática jurídica ou política, onde engodos argumentativos podem determinar decisões importantes para toda uma comunidade.

Se essas táticas obtusas de argumentação devem ser impedidas a todo o custo, é fundamental conhece-las para impedir que prevaleçam quando da discussão de fundo. Esse o declarado propósito de Schopenhauer com a obra ora apresentada.

A importância das técnicas de persuasão é percebida desde a Antigüidade, tendo sido especialmente enfocada na obra da Aristóteles (Tópicos), em que discute a forma de estruturação do raciocínio de um modo geral, onde se pretende esmiuçar todas as formas básicas pelas quais este se revela, se apresenta e se apreende.

Nessa obra, Aristóteles teria separado a busca da verdade através da analítica ou lógica (que visa obtenção de silogismos verdadeiros) da busca da persuasão através da [a] dialética (que visa aceitação de um silogismo como verdadeiro), [b] erística (que visa aceitação do silogismo como verdadeiro a partir de proposições não verdadeiras) ou [c] sofística (que visa aceitação do silogismo que apesar de falso parece verdadeiro).

Apesar de ao longo da obra traçar uma espécie de paralelo com a obra de Aristóteles, Schopenhauer não segue as classificações do filósofo grego por considerar que as categorias identificadas na busca da persuasão em algumas oportunidades se confundem com a analítica que busca a verdade.

Assim, afastando confusões de critérios, o filósofo alemão propõe a divisão radical de método de busca da verdade, analítica ou lógica, e da persuasão, que denomina ora dialética, ora dialética erística. Isso porque considerava que a verdade, em muitos casos, somente pode ser conhecida após a discussão: veritas est in puteo [a verdade está no fundo].

No livro, o autor busca desenvolver as técnicas de persuasão através de estratagemas, numa primeira tentativa de catalogar recursos dessa natureza, cuja importância se verifica em qualquer dos entendimentos sobre a cognição humana.

Apresento esse texto por já ter sido enganado pelos mestres da retórica, outro nome para estelionatários da razão. Conhecer seus estratagemas é importante para não permitir que eles prevaleçam.

Tentei ser fiel ao texto, abdicando de organizar por mim mesmo os estratagemas. Conforme vejo, alguns não deveriam existir isoladamente, outros deveriam ser agrupados. Isso, entretanto, seria trabalhoso e arriscado, por isso resolvi apresentar na forma a seguir.

II. Essência da disputa.

A disputa inicia-se com a proposição de uma tese cuja refutação pode se dar de 2 modos e 2 caminhos:

i. Modos:
[a] Ad rem: demonstração de que a tese não concorda com verdades tidas como absolutas.
[b] Ad hominem ou ex concessis: demonstração de que a tese não concorda com outras proposições do próprio adversário.

ii. Caminhos:
[a] Refutação direta: ataca tese em seus fundamentos. Para isso pode-se [a.1] demonstrar a falsidade dos fundamentos ou [a.2] aceitar os fundamentos, mas negar que a tese resulta deles.
[b] Refutação indireta: ataca a tese em razão de suas implicações. Isso pode ser feito por:
[b.1] Apagogia: aceita-se a proposição do adversário como verdadeira e depois compara-se com outra aceita pacificamente (ad rem ou ad hominem) para retirar conclusão evidentemente falsa, colocando sob suspeita as premissas adotadas.
[b.2] Instância (exemplum in contrarium): refutação de uma tese genérica através da utilização de casos isolados compreendidos na tese genérica, mas que não se submete a ela, invalidando a proposição.

Essa estrutura formal da argumentação pode ser trabalhada de maneira a confundir seus elementos para provocar a aceitação da tese proposta pelo adversário.

Imperativo ressaltar antes de serem propostos os estratagemas que esses dependem de uma condição: de que os litigantes partam dos mesmos princípios relacionados como parâmetro de julgamento da questão (contra negantem principia non est disputandum).

III. Estratagemas:

A apresentação dos estratagemas segue a ordem proposta pelo autor. Tentei seguir o conselho do texto de atribuir nomes a cada um deles para facilitar sua identificação e referência. A maioria dos exemplos são retirados do próprio livro.

1. Extensão indevida simples: Consiste em exagerar a proposição do adversário além de seus limites naturais e inversamente concentrar a própria afirmação num sentido apropriadamente limitado. Obtém-se, assim, a ampliação de possibilidades de ataque da tese do oponente e de defesa da própria.
Exemplo:
Tese: A paz de 1814 restituiu a independência até mesmo a todas as cidades hanseáticas alemãs.
Refutação através de exemplum in contrarium: Mas Danzig perdeu a liberdade que Bonaparte lhe concedera.
Antídoto: Eu me referi às cidades hanseáticas alemãs, Danzig era uma cidades hanseáticas polonesa.

2. Extensão indevida por homonímia: Homonímia significa que dois diferentes conceitos são designados pela mesma palavra (contrário de sinonímia onde o mesmo conceito é designado por duas palavras diferentes). Utilizando esse expediente, tenta-se confundir o significado da proposição inicial, estendendo-a indevidamente.
Exemplo:
Tese: É insensato afirmar que é desonrado quem não responde ofensa com injúria maior, pois a verdadeira honra não ferida por aquilo que se padece, apenas pelo que se faz.
Refutação: Mas e o caso de um comerciante de quem se diz ser trapaceiro? A honra seria atingida por ataque alheio e somente poderia restabelece-la por penalidade ao agressor.
Antídoto: Honra tem mais de um significado. Referi-me à honra cavalheiresca cuja ofensa ocorre por meio de injúrias. A refutação se refere à honra civil, que ocorre por difamação. Não é possível a extensão do argumento.

3. Ignorar as condições de argumentação: Deturpar o sentido proposto ignorando as condições em que é feito, tomando a assertiva como absoluta.
Exemplo (não constante do texto):
Tese: Numa sociedade desigual o Estado tem o dever de trabalhar para proporcionar a redistribuição de renda, como defende tradicionalmente o pensamento esquerdista. [Mais adiante] Os esquerdistas não compreendem corretamente o papel econômico do Estado.
Refutação do argumento ad hominem: Tese é incoerente quanto à posição do Estado em face da economia, defendendo a um só tempo intervenção e não-intervenção.
Antídoto: É possível em dadas condições defender que o Estado permita o livre mercado e promova a redistribuição de renda ao mesmo tempo, sem prejudicar a coerência. As duas assertivas tem limites distintos.

4. Condução longínqua do assunto: Há casos em que o adversário não admite premissas para não conceder sua dedução. Duas são as possibilidades para conduzi-lo a aceitá-las: [a] propor de modo esparso as premissas de modo a ocultar a dedução; [b] quando não se tem certeza que o adversário as admitiria, apresentar premissas das premissas de modo a fazer com que ele concorde com as conclusões até que o necessário seja admitido. Necessário no caso de argumentos ad hominem. Exemplos não necessários. Muito semelhante aos estratagemas 7 e 9.

5. Utilização de proposições falsas concedidas: Caso o adversário insista em não reconhecer proposições verdadeiras, utilize-se as falsas que ele admite contra ele mesmo. Na dialética erística é possível que de premissas falsas resultem proposições verdadeiras.
Exemplo: Quando algum integrante de seita da qual não simpatizamos, podemos empregar contra ele os princípios da mesma, ainda que não concordemos com eles.

6. Petitio principii oculta: A petição de princípio é uma falácia que compromete a validade do argumento. Segundo escrito do caríssimo André Coelho, publicado em seu excelente blog, a petição de princípio é estrutura argumentativa equivocada não porque a conclusão é equivocadamente obtida das premissas, mas porque a conclusão está contida na própria premissa. Supõe-se como verdadeira a proposição que se quer provar.
Exemplo de Descartes: Premissa 1. Deus é um ser perfeito; Premissa 2. Dentre os atributos da perfeição está a existência. Conclusão. Deus existe.
Por mais que se defenda a existência de Deus esse não pode ser considerado um argumento válido, já que a conclusão não deriva da premissa apenas está contida nela mesma. O argumento só prova que se existir um ser perfeito, esse teria que, para ser perfeito, existir. Jamais pode significar, só por isso, que tal ser de fato exista.
O recurso da petição de princípio pode, entretanto, ser manipulado de forma convincente. Schopenhauer propõe fazê-la ao se postular o que se pretende comprovar.

7. Perguntas desordenadas: Uma das táticas de explanação é a condução de raciocínio através de perguntas, fazendo com que o interlocutor acompanhe a construção assentindo com suas premissas até que se apresente a conclusão. Um estratagema argumentativo é fazer muitas perguntas de modo pormenorizado, ocultando o que se quer ver admitido, para então apresentar a proposição central. Muito semelhante aos estratagemas 4 e 9.

8. Provocar raiva no adversário: A raiva tira concentração necessária no foco do debate. Pode ser obtida ao tratar o adversário com declarada injustiça.

9. Manipulação da ordem das perguntas: Impede que o adversário perceba a conclusão que se pretende ver concedida, conduzindo-o a respostas para diferentes conclusões. Muito semelhante aos estratagemas 4 e 7.

10. Conferir ao adversário falsas pistas: Ao se perceber que o adversário pretende negar as premissas necessárias a proposição, apresentando perguntas de modo a fazê-lo acreditar que se quer chegar a conclusão contrária, ou perguntar sem indicar onde se quer chegar.

11. Indução indevida: Apresentar casos particulares de onde emirja determinada proposição através de perguntas, obtendo o assentimento do adversário. Generalizar a conclusão sem perguntar, dando a impressão que o assentimento se estende à conclusão.

12. Manipulação semântica: Schopenhauer entende esse como o mais intuitivo dos estratagemas. Consiste em conferir a uma idéia identificação semântica mais apropriada para a proposição que se defende: adultério/caso amoroso; forte religiosidade/fanatismo, dificuldades financeiras/bancarrota, etc.

13. Contraste forçado: Apresentar dois argumentos opostos, privilegiando o que se quer ver aceito para induzir a resposta e obter a premissa. Schopenhauer usa interessante comparação para explicar: é como colocar o cinza ao lado do preto e chamá-lo de branco.
Exemplo: Tese: Um homem tem de fazer tudo o que seu pai lhe ordene- Deve ou não obedecê-lo? Resposta: Frequentemente. Tese: Em muitos ou poucos casos? Resposta: Muitos.

14. Falsa proclamação de vitória: Confundir o adversário tolo ou tímido com muitas perguntas e, mesmo sem obter respostas favoráveis proclamar o reconhecimento da tese.

15. Obter alguma razão: Quando é difícil a comprovação de uma proposição, ainda assim não se pode parecer sem razão aos olhos dos presentes. Para isso, pode-se formular uma tese relacionada ao assunto original e correta, mas não evidente, para que o adversário se manifeste. Caso ele a rejeite por desconfiança, triunfa-se com a razão substancial. Caso ele a aceite, ao menos alguma razão se teve no debate.

16. Avaliação do argumenta ad hominem (ou ex concessis): Pesquisar coerência das afirmações do adversário comparando com o dito anteriormente, dogmas que aceitou, ações dos adeptos desses dogmas ou com o comportamento do próprio mesmo que falsos ou aparentes.

17. Distinções entre tese e contraprova: Quando se apresenta uma prova contrária à tese, por vezes é possível chamar atenção para diferenças entre os casos, tentando colocar nossa posição a salvo dos ataques.

18. Mutatio controversiae: Ao perceber que o adversário tem razão não se pode deixá-lo concluir. Devemos interromper ou desviar o andamento da disputa.

19. Fuga para o geral: Se o adversário exige refutação de ponto específico e não se tem nada adequado, parte-se para a generalização (contra a confiabilidade do ponto específico proposto) e depois argumenta-se contra a generalização. Pode-se fechar relativizando a validade do conhecimento humano.

20. Concluir sobre premissas aceitas: Se o adversário admite premissas, não devemos perguntar a conclusão delas, mas deduzi-las. Forma mais eficaz de fazê-lo é suprimindo algumas das premissas.

21. Excluir um sofisma com outro sofisma: Ao invés de derrubar argumentos sofísticos com longas explicações preferir igualmente um sofisma, mais breve e mais poderoso para convencer do que longas explicações.

22. Recusa de premissa por petitio principii: Utilizar o expediente de petitio principii em benefício da própria premissa, no sentido de recusar peremptoriamente a premissa do adversário, impedindo sua vitória.

23. Conduzir o adversário ao exagero indevido: Deve-se incitar o adversário a expandir a própria afirmação de maneira indevida para refutarmos sua validade fora do âmbito inicialmente proposto. Deve-se deter o expediente contra nossa argumentação refutando o exagero.

24. Fabricação de conseqüências: Utilizar falsas deduções ou deturpações de conceito para forçar proposições não correspondentes à do adversário. Assim é possível levantar contradições aparentes na argumentação do adversário, jogá-las contra verdades reconhecidas (refutação indireta ou apagogia).

25. Falso exemplo em contrário (ou instância): Trata-se de uma refutação indireta através de exemplo que descaracteriza a proposição do adversário. Necessário avaliar o exemplo: i) caso apresentado é mesmo verdadeiro; ii) verificar se está compreendido na proposição apresentada; iii) verificar se há necessária contradição entre o exemplo e a proposição.

26. Retorsio argumenti: Usar a proposição adversária contra o próprio, dando a impressão de má compreensão do caso.
Exemplo: Tese: É uma criança. Não devemos leva-la tão a mal. Retorsio: Justamente por se uma criança deve ser castigada..

27. Provocar o ponto fraco do raciocínio: A raiva do adversário quando se toca em determinado ponto pode denotar sua fraqueza. Insistir energicamente quando possível.

28. Argumentum ad auditores: Em se tratando de uma platéia não versada no assunto e que não vislumbra a inconsistência do argumento é possível vencer quando a objeção expõe o outro ao ridículo. Obter o riso dos presentes em geral significa ganhar a discussão.

29. Desvio ou digressão: Ao perceber que a razão acompanha o oponente, desviar-se do tema com insolência, esperando que o adversário perca-se no desvio. Curioso a forma sugerida pelo autor para suscitar o estratagema: “Sim, e o senhor também afirmou recentemente que...”, onde direciona o argumento à pessoa e não à preposição.

30. Argumentum ad verecundiam: Utiliza-se argumentos de autoridades contra o adversário, dependendo do seu grau de conhecimento da questão. Dependendo do opositor vários estratagemas podem ser usados: citações em grego ou latim, preconceitos comuns, opiniões gerais, filósofos, etc.

31. Proposição complicada: Tentar descreditar a proposição alheia pela impossibilidade de compreendê-la. Só pode ser utilizado quando se tem prestígio maior junto ao ouvinte que o adversário, trata-se de mais uma forma de fazer valer a própria autoridade. Antídoto é culpar-se pela própria exposição e então de forma a esfregar-lhe na cara a proposição, ainda que de maneira cortês.

32. Rotular a proposição em categoria odiada: Reduzir a afirmação a uma categoria reconhecidamente odiada, como v.g., o nazismo, para impor sobre ela conhecida carga opositiva ainda que isso não seja preciso, refutando-a liminarmente.

33. “Isso pode ser verdadeiro na teoria, mas não na prática”: Esse sofisma é muito utilizado por quem não sabe discutir os fundamentos da proposição, atacando suas conseqüências. Mas é certo que se trata de um sofisma, porque não deve haver dissociação entre “prática” e “teoria”.

34. Impedir a esquiva: Quando o adversário tenta esquivar-se do estabelecimento de uma premissa argumentativa devemos perceber se ele o faz por ser a fraqueza do seu ponto de vista e insistir no ponto. Sinais disso são o silêncio, a resposta em forma de pergunta, etc.

35. Contradição entre objetivo e argumento: Quando se sabe que o adversário detém objetivo determinado é possível usar essa informação para atacar sua proposição sobre algo, demonstrando-lhe a contradição entre ambos. Isso pode também ser utilizado para colocar os objetivos da platéia contra o adversário. Aquilo que parece desvantajoso geralmente parece absurdo ao intelecto. É chamado argumentum ab utili.

36. Discurso incompreensível: Assustar o adversário com palavreado complicado e sem sentido, servindo contra aqueles que são conscientes da própria debilidade. “Normalmente o homem, ao escutar apenas palavras, acredita que também deve haver nelas algo para pensar” (Fausto, Goethe).

37. Refutar o mau argumento: Se alguém tem razão, mas escolhe um mau argumento para defendê-la, é passível de ter a proposição aniquilada pela refutação do que foi apresentado. Para isso é preciso manter a discussão no nível ad hominem.

38. Partir para o ataque: Ao perceber que o objeto da contenda está perdido, tornar-se indelicado e insultante. O caráter ofensivo é retirar o foco do objeto perdido, apelando para as mazelas da vaidade humana.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Alguns Aspectos das Class Actions

I. Por que?

Foi nos EUA que a litigância em grupo tomou pela primeira vez proporções relevantes. A expansão do mecanismo foi significativa abrangendo diversas categorias de direitos assim como questões centrais da política americana.
O assunto é importante para o estudo das ações coletivas no Brasil, onde sua a utilização é mais recente, ainda está em expansão, explorando seus limites no direito nacional.
A análise da experiência americana é fundamental para a exploração desses limites, ultrapassando meras análises legislativas, buscando paradigmas válidos para seu desenvolvimento.
Em comparação com outros regimes existentes, as class actions são a principal inspiração do modelo brasileiro, fonte de onde tentou adaptar o tratamento da matéria, tornando especialmente importante o estudo de uma melhor compreensão desse modelo.

II. Regime das class actions americanas:

a) Breve nota sobre a organização judiciária nos EUA

1. Após a expulsão de diversos outros países europeus com colônias na América do Norte, a Grã-Bretanha passou a dominar o cenário político daquele local. Com isso, influenciou a população já estabelecida com seu direito e estrutura organizacional.
Apesar de não se interessar pelos aspectos jurídicos das colônias, passou a impor que as decisões pudessem ser revistas pelo King’s Privy Council, não em caráter específico como corte de apelação mas para determinar regras gerais de cunho jurídico e político em rígido controle do poder de governo da metrópole.
Assim, as colônias que tinham sistemas judiciários diferentes, aproximaram seus institutos de maneira cada vez mais próximos do modelo inglês, particularmente do sistema judiciário common law.
Mesmo diante dessa tendência universal entre as colônias, não se podia considerá-las como um conjunto homogêneo nem em aspectos jurídicos, por vezes totalmente diferenciadas umas das outras, nem do aspecto políticos, pois tinham relações mais fortes com a metrópole do que entre si.
Em geral, o sistema das colônias americanas era uma cópia simplificada daquele concebido na Grã-Bretanha. Essa tônica de relativa independência entre os estados sempre foi preservada tanto após a revolução americana quanto no presente em que cada Estado da Federação sua autonomia jurídica e judiciária, bem como próprio procedimento.

2. O sistema inglês adotado pelos EUA era complexo, pois jamais tinha sido exposto a uma sistematização, nem tinha sido concebido de forma racional. O sistema baseado em teoria política medieval e em sua maior parte baseado em decisões de casos concretos tinha como principais instituições as segunites:
i. Dois regimes judiciários co-existentes e distintos common law e equity.
ii. Sistema de procedimento de writ na common law.
iii. Uso de júri para determinar questões de fato.
iv. Adversary system para defesa das pretensões em juízo
Common law é regime judiciário peculiar dos países cujo direito originário de cultura anglo-saxônica. Designa direito originado das próprias cortes, emanado da autoridade do próprio rei. Era declarado e executado pelas cortes de justiça da antiga Inglaterra (King’s Bench, Common Pleads, Exchequer) originariamente para impedir a violência entre os comuns (trespass) e posteriormente para resolver as questões jurídicas subjacentes à violência. À medida que crescia a autoridade do rei em relação aos outros nobres esse regime passava a ter cada vez maior amplitude.
Era também lei de abrangência territorial geral em concorrência e oposição aos tribunais locais e demais órgãos judiciários existentes (coexistiam com essas cortes não podendo sofrer oposição das mesmas).
A evolução na função jurisdicional sob tal regime chegou até mesmo a restringir o poder do próprio Estado (governantes), sendo efetiva fonte original de direitos.
Common law writ procedure era estabelecido rigidamente para o acesso às cortes desse sistema judiciário. O writ era uma ordem inicial proferida pelas cortes de justiça para cessar o estado de violência e apurar a justiça no caso concreto em julgamento: oportunizava a defesa e após proferia decisão sobre o caso. O procedimento era estrito e designado conforme o caso concreto sendo usado conforme o a situação material a ser tutelada. Havia divisão consagrada no direito de origem anglo-saxônica do juízo de fato ser de competência do júri e de direito do magistrado.
Equity, por outro lado, é regime judiciário que existiu nos países anglo-saxônicos no mesmo plano na common law. Na história, trata-se da quarta corte de justiça a existir na Inglaterra (Court of Chancery, Corte do Chanceler), justamente em razão da limitação da competência das cortes anteriores.
O procedimento da equity era muito mais flexível e similar aos procedimentos civis modernos, próximos ao que se entende por cognição ordinária, colhendo inquisitivamente as provas trazidas pelas partes e expedindo ao final seu decree que punha termo ao julgamento. Apenas excepcionalmente em caso de descrédito das provas apresentadas o procedimento seria encaminhado às cortes de common law para verificação pelo júri, de resto o juízo era restrito ao discovery do juiz designado.
Não fosse somente isso o juiz de equity detém poderes discricionários em relação aos da common law, não limitados aos limites da lei ou dos precedentes.
Para obter o juízo de equity, dever-se-ia demonstrar a não aplicabilidade da common law na inexistência de competência ou efetividade no procedimento daquela. Mas na prática, ambas estenderam suas competências para áreas de intercessão.
A competição entre esses regimes judiciários concorrentes acabou como meramente burocrática, sendo determinada pelas características dos procedimentos oferecidos por cada um. O procedimento da common law foi exportado para as colônias americanas, havendo algumas que também copiaram o regime da equity.

3. Os procedimentos entre os dois regimes concorrentes tinham as seguintes características:
Common law: No fim do século XVIII, os procedimentos desse regime judiciário eram muito diferentes do procedimento da equity. Necessitava de alegações iniciais estilizadas, os juízos de fato eram elaborados por júri e os juízos de direito pelos juizes designados, com repercussões sérias em matéria de prova. A justiça era extraída desse juízo duplo. Originariamente não admitia qualquer revisão, mas esse posicionamento evoluiu no sentido de admitir a revisão do procedimento, mas não do mérito. No procedimento americano moderno, admite-se a devolução integral da matéria, existindo apenas restrição sobre os fatos que são determinados pelo júri.
Equity: Parecido com os procedimentos modernos. Não recorre a um júri para fazer o juízo de fato. Inicia com a narrativa do requerente, resposta do requerido, produção probatória e sentença sobre o caso. Algumas diferenças devem ser marcadas para o procedimento probatório em paralelo com antigas restrições que eram feitas tais como impossibilidade dos depoimentos das partes serem levados em conta como prova, sendo a colheita de provas conduzida para obter a confissão das partes.

4. Nos EUA do século XIX, ao contrário da Inglaterra em que o chanceler era autoridade que não admitia revisão de seus atos, a equity passou admitir tais revisões.
Além de procedimentos diferentes é importante notar que o direito material seguido por ambas as cortes era distinto o que causava muita confusão na organização judiciária britânica. Quando passados à América, a maneira pela qual foram recepcionados é que divergiu bastante entre as colônias, gerando falta de uniformidade da organização judiciária, pois cada uma adotava de maneira diferente o anacrônico sistema total ou parcialmente, mesmo depois da declaração de independência.
O adversary system é uma das principais características do processo americano e permeava tais procedimentos: consiste em doutrina que prescreve ser a responsabilidade da apresentação e defesa do caso às partes e seus representantes.
São muitas a repercussões que derivam dessa premissa: o papel do juiz no processo é mais passivo em contraste com o juiz do direito romano civilista cujo papel é mais investigativo; a perspectiva do modelo probatório é totalmente diferente também na medida em que a determinação da verdade consiste muito mais em escolha de uma das versões apresentadas
A história americana não conservou integralmente esse sistema, apesar de tê-lo levado em conta de diversas maneiras. Uma reforma nos regimes judiciários no início do século XIX para sua simplificação se processou sob a rubrica code pleading. A reforma é decorrente da necessidade de dar racionalidade ao procedimento (nos moldes do cientificismo iluminista), acessibilidade ao cidadão comum e sanando disfuncionalidade do sistema anterior.
Feita através de uma reforma legislativa, as principais mudanças do movimento foram:
1) Abolição do sistema dual, exceto pela preservação do júri;
2) Requerimentos iniciais foram libertos de formas estritas para um modelo narrativo mais simples;
3) Todos os pedidos sobre o mesmo caso poderiam ser cumulados no mesmo processo o que era vedado pelo regime anterior pela forma e competência do sistema dual;
4) Abolição da regra de que partes não poderiam ser testemunhas;
5) Procedimentos probatórios foram unificados;
6) Manutenção do júri para caso de danos e disputas sobre imóveis.
Apesar disso nem todos os problemas foram resolvidos, diante da cultura tecnicista do judiciário por se continuar a querer a vantagem procedimental, entre muitas outras complicações advindas da interpretação do referido código. Assim o sistema do code pleading desembocaram na adoção das Federal Rules of Civil Procedure, em 1938.
Essa lei, FRCP, foi motivada pela dificuldade imposta pela aplicação do anacrônico regime com resquícios da conformação judiciária dual à conformação da Justiça americana no século XX. A necessidade de uniformização dos procedimentos federais e atualização do processo levaram o Congresso a outorgar a elaboração dessas regras à Suprema Corte, a qual se desincumbiu do ônus de fazê-lo, apresentando como resultado um sistema que adotou os princípios gerais da equity (rompimento com restrições estritas à discovery, relaxamento dos requisitos para postulação em juízo, flexibilização das regras de litisconsórcio e desenvolvimento sistêmico das class actions).

b) Histórico básico das class actions.

1. Paralelamente a esse desenvolvimento do processo civil é de se notar também o desenvolvimento do regime das class actions.
As origens do instituto são muito ligadas ao tema da legitimidade ad causam, considerando que uma de suas características mais distintivas é a quebra do paradigma estrito do exercício do direito por seu titular, noção clássica do liberalismo.
A possibilidade de se agir em nome de classe ou grupo remonta à sociedade inglesa estamental da idade média quando a noção de grupo e de representação de interesses por representantes era natural ao contrário da noção liberal.
Apesar de indícios dessa noção de litigância em grupo ser identificado ainda no século XVI no bill of peace, a idéia somente toma proporções modernas e relevantes já nos EUA do século XIX provinda da dificuldade de tutelar direitos, ainda individuais.

2. Primeiro sinal de ressonância nos EUA da matéria foi percebido em julgamento proferido pelo Justice J. Story em West v. Randall ao afirmar que não seria exigível o litisconsórcio quando esse se tornasse opressivo e inconveniente para a defesa do direito, admitindo-se a litigância em grupo, mas registrando a não vinculação daqueles que não participaram da ação em relação à sentença. Trata-se de superação da forma para viabilização da tutela jurisdicional adequada.
O precedente da litigância e alguns poucos casos sobre a matéria levaram a Suprema Corte ainda no sistema de equity em 1842 a editar a primeira regra sobre class actions, a chamada equty rule 48, que repetiu a simplicidade das primeiras formulações.
A situação levada ao conhecimento da corte no caso Smith v. Swormstedt, entretanto, mudou essa situação, quando a Suprema Corte passou a aceitar a representação por poucos de um grupo mais numeroso passando a reconhecer a vinculação dos ausentes (caso de missionários que faziam fundo de aposentadoria que foi negado a parte dos beneficiários sulistas quando de tensão gerada entre Estados).

3. A equity rule 38 substituiu tal regra em 1912, com a modificação obtida pela jurisprudência incorporada. Sob a égide dessa lei reafirmou-se o precedente anterior, com o entendimento consignado no caso Supreme Tribe of Ben Hur v. Cauble, no qual ficaram vinculados ao pronunciamento judicial todos os membros de uma organização sobre o controle dos fundos da mesma apesar de não terem sido parte da ação. Afirmou-se: “Se o pronunciamento judicial precisa ser efetivo e julgamentos conflitantes precisam ser evitados, toda classe deve estar vinculada pela decisão”.
Até esse momento, a concepção de class actions era voltada para a supressão do número de litígios, impedir multiplicação de demandas iguais sendo fator de redução dos processos e acesso à justiça de demandas inviáveis que nunca seriam formuladas sozinhas.

4. A adoção da FRCP modificou e melhorou muito a regra das class actions ao incorporar orientações jurisprudenciais e sistematizar suas regras. Corretamente, percebeu a rule 23 que as class actions mereceriam um tratamento diferenciado conforme a natureza do interesse tutelado.
A classificação da regra de 1938 pretendeu regulamentar uma categoria processual aplicável especialmente a direitos individuais como técnica para produzir efeitos coletivos onde a intensidade da relação entre um e outro. Essa a razão pela qual Vigoriti vislumbrou nas class actions americanas uma característica eminentemente privada.
Daí a criação três diferentes espécies de ações:
i) True ou Autênticas: Natureza indivisível do interesse e do direito é comum a todos os membros do grupo. Ex. Ações movidas por sócios de limitadas para tutela do bem comum; Ações movidas por agentes cujo interesse pelo direito é secundário, quando aquele que detém o interesse primário não ajuíza ação.
ii) Hybrid ou Híbrida: Feita para tutelar situações em que o interesse por determinado bem jurídico é compartilhado em relação ao mesmo objeto. Ex. Acionista que ajuíza ação para obter seguro contra fraude, cujo prêmio é pago por fundo que confere limitada indenização para cada segurado, quando a empresa é acometida ao ilícito.
iii) Spourious ou Espúria: Direitos individuais múltiplas decorrentes de situações de fato ou direito, o que permitiria a utilização do remédio processual comum, apesar do objeto não ser indivisível. Dessa maneira, apesar de facultar o common releif para situações absolutamente idênticas, não vinculava aqueles que não participassem do processo.
Esse modelo fracassou por diversos motivos práticos que foram da dificuldade no isolamento de categorias e à falta de vinculação nas spourious class actions.
Foi na constância desse modelo que as class actions eclodiram e tiveram período de maior destaque estendendo sua aplicação a demandas de caráter público, ensejando necessidade de regulamentação mais detalhada.

c) Class actions contemporâneas: FRCP de 1966.

Em 1966 a rule 23 das FRCP foram substancialmente alteradas de maneira a conferir às class actions regulamentação mais clara e precisa para o fenômeno de crescente utilização desse processo. Tal emenda vem sendo ajustada ao longo do tempo para cada vez mais controlar determinados aspectos desse fenômeno.
As últimas modificações foram feitas em 2005 através da lei chamada Class Action Fairness Act (CAFA), o qual teve o intuito de moralizar cada vez mais o uso dessas ações e corrigindo distorções maléficas ao seu uso.

i) Estrutura da regra: dividida em 6 partes.
Alínea “a”: Requisitos de admissibilidade das class actions;
Alínea “b”: Espécies legais de class actions com modelos processuais distintos;
Alínea “c”: Certificação e prosseguimento da ação como coletiva;
Alínea “d”: Poderes diferenciados para o juiz;
Alínea “e”: Extinção do processo e transação;
Alínea “f”: Recurso contra negativa de certificação.

ii) Requisitos de admissibilidade das class actions (alínea “a”):

ii.1 – Classe identificável: requisito implícito de significação normalmente ampla, não restrita aos entendimentos econômico, político ou cultural do termo, mas de acordo com o que for adequado para o caso. A classe tem de ser determinável especialmente por conta dos efeitos que o processo ensejará para o caso, especialmente para a ação de danos (class action for damages, por conta da notificação que ensejará o estabelecimento do contraditório).

ii.2 – Numerosidade e inconveniência do litisconsórcio (Numerosity): O tamanho da classe deve ser suficiente para tomar impraticável a reunião de todos os litigantes. Número não é limitado, mas deve ser sopesado com outros aspectos como a dispersão geográfica, diminuto valor patrimonial, natureza e complexidade das causas, entre outros que sejam capazes de tornar inconveniente a litigância individual.

ii.3 – Questões comuns de fato e direito (commonality): que sejam comuns à classe e relevante para a causa. Deve ser conjugado e avaliado junto aos requisitos da class action for damages (prevalência da questão comum e superioridade do método coletivo sobre o individual de processo). Ex. É o mesmo fato que causa discriminação que atinge de diferentes maneiras os membros de uma classe (civil rights class action).

ii.4 – Identidade de pretensões ou defesas entre representante e classe representada (tipicality) deve ser tratado em conjunto com o requisito da Representatividade adequada (adequacy of representation). Tratamento em conjunto proposto por Friedenthal, Kay e Miller: Trata-se de requisito onde se deve verificar se o representante formula ação compatível com os interesses da classe e se ele satisfaz o requisito do standing ou seja se é tem interesse direto na causa fazendo parte efetivamente da classe (injury in fact e personal stake).
A representatividade deve ser considerada como medida de caráter excepcional porquanto é privilegiado a defesa dos próprios direitos, sendo essa medida uma forma de viabilizar direitos e não substituir a tutela individual.
Os critérios de aferição da responsabilidade adequada não recaem apenas sobre as partes, mas também sobre os advogados, visando realizar controle técnico e ético sobre a causa.
Ex. Mason v. Garris e Anderson v. City of Albany, julgados que estipulam como referencias para a adequada representação ou a autorização dos membros ou mesmo a autoridade que o representante exerce sobre a classe.
Ex. Caso LaMar v. H&B Novelty & Co., caso sobre cobrança de dívidas em patamar de agiotagem em que se entendeu por subdividir classe para que somente fosse processado em conjunto aqueles enganados pelo mesmo agiota (1973, 9th. Circuit).
Regra 23.2, incluída em 1966, sobre Unincorporated Associations amplia a possibilidade dessas associações não oficiais representarem determinada classe.
Recentemente houve decisão da Suprema Corte muito controvertida em relação a representatividade no caso Lujan v. Defenders of Wildlife em que não se admitiu a certificação da ação por aduzir que faz parte do quesito que o representante seja parte direta da causa sofrendo ele também o injury in fact. Disso discordo, por ser interpretação dissonante dos preceitos de adequação da tutela coletiva.

iii) Espécies de class actions (alínea “b”):

iii.1 – Espécie b.1 que é subdividida.

b.1.A – Destina-se a evitar julgamentos dissonantes para membros de determinada classe evitando que sentenças imponham àquele que litiga contra a classe condutas incompatíveis.
Diz-se que se equipara ao litisconsórcio facultativo, tanto em lei quanto doutrina (Aluísio Mendes). Se é assim, devem lhes ser impostos os requisitos de prevalência e superioridade das class actions for damages.
Entretanto, essa espécie não pode albergar indenizações, apenas tutelas mandamentais e declaratórias.
Ex. Exação tributária que é contestada por uns em relação a sua validade e por outros em relação à alíquota majorada: no direito americano isso deve se transformar em class action para que não sejam diversos os julgamentos.
Essa espécie é similar a tutela da direitos coletivos e difusos pela indivisibilidade do objeto litigioso.

b.1.B – Caso em que não se pode evitar que o ausente seja afetado pelo processo, dispondo de seus direitos pessoais apesar de atender a classe como um todo.
Ex. Tradicionalmente é aquela ação movida por indivíduos contra um fundo insuficiente para satisfazer todas elas (Membros de uma classe que perseguem compensação de fundo de recursos limitados, sendo que se forem distribuídas em ações individuais, com base na precedência dos processos, o patrimônio será insuficiente para atender a todos. É caso de ações expostas ao princípio par conditio creditorum como a liquidação de sociedade e no rateio falimentar).
Ex. Seria o caso de demanda de sócio acionista para anular decisões de assembléia.
Cássio Scarpinella lembra que esse tipo era entendido por Liebman como espécies de ações concorrentes.

iii.2 – Espécie b.2: Quando alguém atua ou recusa-se a atuar de modo uniforme perante a classe, ou seja, quando trata-se de maneira não isonômica, pode ter contra si requerido tutela mandamental ou declaratória que encerre o assunto. Não compreende condenação, própria do item b.3.
Ex. Principais exemplos desse caso passam pela efetivação de direitos civis, como discriminação racial, religiosa ou sexual, discriminação de preços (abuso do poder econômico) ou venda casada.

* Os tipos acima (b.1.A; b.1.B; b.2) são todos classificados como necessárias (mandatory), porque são ações somente processadas de maneira coletiva e assim vinculam todos os que estejam incluídos na situação tutelada.

iii.3 – Espécie b.3 – Chamada class actions for damages. Caso em que as questões de fato e direito comuns predominam sobre as questões individuais para a resolução da causa, ainda que o vínculo de cada um seja autônomo em relação ao objeto (predominância). Para caracterização dessa espécie é ainda necessário que a solução de utilização do método do direito processual coletivo seja superior ao processo individual no julgamento justo da causa (superioridade).
No direito brasileiro esses requisitos também existem ainda que não expressos nas leis que instituem o processo coletivo. Além de exigir a origem comum do direito e homogeneidade e prevalência do interesse comum na causa para caracterização da ação (art. 81, III do CDC), também exige a superioridade do mecanismo da tutela coletiva sobre a individual identificada na condição da ação do interesse de agir e no postulado da efetividade do processo presentes no sistema brasileiro: o primeiro indica que só se pode usar de medida judicial quando adequada ao caso, o segundo indica que ela deve ser suficiente para afastar o conflito.
Deve ser decidido nesta ação:
a) Interesse do grupo em controlar individualmente a ação;
b) Extensão e natureza do litígio;
c) Conveniência de concentrar o debate em determinado tribunal;
d) Sobre eventuais dificuldades no processamento.
Neste caso, por se tratar de direito individual, há o direito do titular em demandar sozinho pelo mesmo retirando-se da ação e não ficando sujeito ao seu resultado positivo ou negativo (right to opt out).

iv) Notificação (notice): A notificação é devida no caso da class action for damages, prevista na rule 23.b.3. Scapinella relata que a jurisprudência vacila nesse particular, havendo quem exija fair notice em todas as class actions apesar da literalidade do artigo. Trata-se de mecanismo de comunicação da classe sobre o processamento da ação coletiva em que seu direito individual está sendo julgado.
Mas qual o objetivo: resguardar o direito individual ou mecanismo de verificação da representatividade? A Suprema Corte no caso Eisen v. Carlisle & Jacquelin decidiu pela primeira opção, demonstrando o caráter individual do sistema americano apesar de ser uma decisão permeada por outras questões de fundo. Se há adequada representação, o requisito da fair notice tem de ser aplicado com parcimônia, de maneira a não inviabilizar a ação coletiva.

v) Competência: O CAFA proporcionou a modificação de questões referentes a competência visando conferir mais legitimidade e funcionalidade ao sistema das class actions. As modificações foram no sentido de promover a competência da justiça federal diante da multiplicidade de Estados atingidos pelo dano. Esse critério já existia na experiência americana, mas os critérios para sua caracterização foram suavizados, contrariando a orientação da Suprema Corte sobre a matéria. Assim, vislumbrou-se retirar os casos de juízes estaduais eleitos e mais propensos a certificar class actions para seus eleitores e porque visavam impedir que tais juízos atingissem para padrões nacionais buscando maior legitimidade para a decisão. A estrutura da norma indica que somente casos realmente de interesse do estado membro seja julgado pelo judiciário estadual.

vi) Certificação (certification): Identificando os requisitos legais para a ação os tribunais podem admiti-las como coletivas ou não, sem prejuízo do julgamento da questão individual. Para essa tarefa, valem-se de grau elevado de discricionariedade, típico da defining function do juiz para esse tipo de ação.
A discricionariedade acaba levando as decisões sobre o que será certificado ou não para o campo político, como relata a professora Ada P. Grinover quando fala do caso Castano v. American Tobacco Co. em que além de questões técnicas, não foi certificado por pressões políticas de todo um setor produtivo.
Scarpinella relata que não havia possibilidade de recurso da decisão denegatória de certificação, situação modificada pela CAFA, apesar do recurso ser de recebimento discricionário pela Corte de Apelação.

vii) Mecanismo de fluid class recovery: Quando o custo para execução de quantias suplantar o custo a ser recebido ou quando o pagamento de danos sofridos não esgotar a responsabilidade do devedor conforme a decisão. Trata-se de uma compensação para a classe como um todo em detrimento da indenização individual.
Ex. Cartéis de controle de preços pode sofrer esse tipo de execução obrigando-os a minorar os preços em determinado período de tempo.

viii) Acordos: Tem de ser controlados pelo judiciário no sentido de impedir abusos às classes e extensão dos acordos. Para que seja aceito, tem de ensejar fair notice mesmo para ações já certificadas. Aqui se manifesta o direito de opt in do componente da classe para o acordo, caso concorde com o mesmo.

ix) Outras regras: A distorção no uso das class actions motivaram outras alterações no sentido de preservar o instituto de seu mal uso. Assim é que se instituiu o opt out de acordos e diversas regras relacionadas a escolha e remuneração do advogado. O intuito é impedir que advogados sejam os principais interessados na ação coletiva, promovendo maior fiscalização dos integrantes da classe e controlando as quantias resultantes do trabalho do advogado.

III. Referências bibliográficas:

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GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class actions for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. Revista Forense, vol. 352.

HAZARD, Geoffrey C.; TARUFFO, Michelle. American civil procedure. New Haven: Yale, 1993, p. 1/28).

KLONOFF, Robert H.; BILICH, Edward K. M. Class acticons and other multi-part litigation. St. Paul: Thomson/West, 2004.

MARCUS, Richard L.; Sherman, Edward F. Complex litigation. St. Paul: West Group, 1998.

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