quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Norberto Bobbio e sua Análise Funcional do Direito


1. A trajetória acadêmica de Norberto Bobbio é um dos pilares sobre os quais é edificada a história do pensamento jurídico italiano no século XX. Dedicou-se intensamente ao estudo do direito, tendo feito coro ao positivismo jurídico de Hans Kelsen. Travou vários debates nas décadas subseqüentes ao pós-guerra, defendendo a concepção kelseniana contra o jusnaturalismo, que havia voltado à moda como reação às críticas dirigidas ao uso da doutrina do direito positivo pelos Estados totalitários.
O pensamento jurídico de Bobbio é marcado por duas distintas, mas complementares, fases de produção sobre o positivismo jurídico na Itália.
Na primeira fase, o autor tinha como tema fundamental a definição científica do direito, definindo seus lindes metodológicos equiparados às ciências naturais. Ao seu modo, identifica na pirâmide kelseniana a consideração do direito não como uma microteoria da norma como objeto singular e autônomo, mas para uma macroteoria que consiste em considerar um complexo de normas constitutivo da ordem jurídica e das relações entre elas.[1]
Em 1968, Bobbio abandonou a cátedra de teoria do direito para dedicar-se à ciência política em Turim, onde desenvolveu trabalhos de semelhante estatura. Jamais, entretanto, deixou de publicar sobre o direito que continuou a estar dentre suas principais preocupações. É esse fato que marca reviravolta considerável do pensamento jurídico do autor, que passa a reconhecer explicitamente os limites do modelo epistemológico herdado do movimento formalista do direito.
Já posteriormente ao advento da nova cátedra, Bobbio publicou obra onde constavam ensaios diversos em que mudava sua linha de raciocínio sobre o direito, desenvolvida ao longo de muitas décadas. A questão normativa, estrutural, do objeto do direito não mais estava dentre suas preocupações, mas sim seu caráter funcional pelo qual visava responder a pergunta: para que serve o direito?
Naturalmente, diversas fronteiras se abririam ao pensamento jurídico a partir dessa reflexão, mesmo porque tal alternativa, segundo Bobbio, não excluiria tudo aquilo que ele mesmo já havia produzido ao tomar o direito como norma. Apenas seria acrescentada uma dimensão teleológica à reflexão jurídica a qual garantiria uma decisiva abertura das normas ao mundo dos fatos, à organização social.
O ponto central que motiva as reflexões de Bobbio sobre tal função teleológica é o advento do Estado Social e atribuição de novo papel ao direito, a saber, seus atributos promocionais. Com isso, o direito não mais se restringe a sua função repressiva, passando a incentivar e dirigir os comportamentos sociais em direção ao ideal social que propaga. A motivação do autor nesse particular é dobrada quando comparado com suas reflexões políticas, que têm como objetivo conciliar os postulados liberais (princípios de liberdade) com aqueles da tradição socialista (princípios de igualdade).
Diante da ausência de reflexões sobre tal dimensão do direito dentre as preocupações formalistas, a sociologia do direito passa a desempenhar papel fundamental no estudo jurídico.

2. A contradição histórica entre abordagem formalista e sociológica é muito anterior a verificada nesse autor, tendo sido definida pelo embate das fontes do direito (respectivamente monistas e pluralistas). Na época, os chamados estadistas (predecessores do formalismo) identificavam o direito com a norma, os sociólogos do direito viam esse objeto produzido diretamente pela sociedade.[2]
Posteriormente, não era exatamente o problema das fontes do direito que passavam a ocupar as teorias sociológicas do direito (até porque no meio jurídico já estaria sedimentado a proposta do direito formal, estatal), mas sim suas funções. Diante da transformação para o Estado Social, qual o impacto que o direito sofreria em seus objetivos, dada sua natureza de subsistema da sociedade contemporânea. Isso explicaria o rápido desenvolvimento da teoria funcionalista do direito.
O interesse na função social do direito também cresceu à vista das teorias marxistas que acrescentou à sua definição de ordenamento coativo, sua função de perpetuar o domínio de classes.
Esse foi um espaço vago que deixou a teoria de Kelsen. Diante do seu rigor científico na definição do objeto do direito na norma jurídica, a definição oferecida parou no conceito de ordenamento coativo. A função oferecida para o direito nessa perspectiva seria a paz, a ordem e a segurança coletiva nas relações internacionais. Mas não havia definição que qualquer conteúdo específico, sendo apenas um instrumento para as mais diversas funções. Seria apenas o modo pelo qual os fins, sejam quais forem, sejam alcançados. Acreditava-se ser o elemento característico da teoria do direito na estrutura do ordenamento jurídico como sistema dinâmico, sem a necessidade de objetivo para sua definição.
Bobbio relaciona essa falta de conteúdo com teorias do Estado que jamais admitiram sua finalidade, limitando-se apenas a descrever seus elementos constitutivos. Na verdade, trata-se de relação passível de ser feita com o paradigma do poder legal-racional, pelo qual se induzia a concentrar atenção dos processos de organização nos instrumentos que nos problemas de ordem axiológica e sociológica, tal como sugerido por Weber.[3]
Diante da ausência de um fim específico propunha o direito como mero instrumento, cuja apropriação estaria ao alcance de qualquer ideologia.

3. A análise funcional do direito depende do questionamento de determinados pressupostos de estudo da matéria.

a) Uma das características das sociedades tecnocráticas seria a progressiva perda de função repressiva do direito (processo de desjuridificação). Duas são as linhas de argumentação importantes nesse sentido:
[i] integração social através da ampliação dos meios de comunicação em massa (condicionamento do comportamento coletivo): isso passa pela socialização (adesão a valores estabelecidos e comuns) e imposição de comportamentos considerados relevantes para a unidade social (repressão dos comportamentos desviantes). São relacionados aos meios institucionalizados de poder: ideológico e político. Na medida em que o consenso, mesmo manipulado, avança, diminui a necessidade da repressão jurídica.
[ii] aumento dos meios de prevenção social: o desenvolvimento da prevenção no direito como na medicina tenderia a impedir o número de conflitos a partir de uma auto-regulação social. Nesse caso, o direito subsistiria na forma de normas de organização dos meios sociais que substituiriam a repressão. Com isso, entra em declínio a tradição que entende ser o estado de natureza, como situação sem direito, equivalente a destruição dos homens. Impede a noção de progressividade da história no sentido de que quanto mais presente o Estado ou o direito, mais evoluída seria a sociedade examinada.

b) O funcionalismo é teoria que se propõe a entender o sistema social tal como um organismo considerado como um todo. Parece que tal tipo de análise não concebe instituições sem uma função positiva. No máximo, concebe o funcionamento defeituoso (disfunções) que poderiam ser corrigidas. A função negativa exigiria a transformação do sistema.
O direito, como uma das partes do sistema social considerada em função do todo, detém uma função positiva primária já que é instrumento de conservação por excelência. É o subsistema do qual depende em última instância a integração do sistema, para além do qual há inevitável desagregação do sistema.
Do ponto de vista da mudança do sistema, o direito também ocupa lugar de destaque mudando a ordem vigente e adaptando-a as mudanças sociais (prova disso é a possibilidade leis atualizadas substituírem defasadas). Bobbio sugere que esse papel pode ser desempenhado pelo direito por ter também uma função negativa que atua tanto quando o direito se adianta à mudança social, quanto no caso em que tutela um conflito posteriormente a sua verificação.

c) Qual ou quais as funções do direito? Não é nova a análise que postula para o direito uma função distributiva, conferindo a membros do grupo social recursos econômicos e não-econômicos. Relaciona-se o exemplo do historiador do direito James Williard Hurst, de origem americana. Tal autor já destacava em sua obra o estímulo e apoio que o direito pode conferir, alem da possibilidade de alocar recursos.[4] Na verdade identifica que qualquer grupo social é, além de prevenir conflitos e resolvê-los, distribuir recursos disponíveis.
Tais funções identificadas ganham papel ainda mais proeminente no Estado Social. Essa função do direito não foi tradicionalmente reconhecida diante do peso fortíssimo exercido na cultura ocidental em que o Estado e o direito restringir-se-iam a um papel mínimo ante a esperança de auto-regulação da economia e da sociedade. O direito teria o papel de facilitar o estabelecimento das relações privadas, garantir sua continuidade e segurança e impedir a dominação recíproca.
Prova dessa longa tradição jurídica é a permanente relação que se faz entre direito e moral (nunca à economia), pois ambas teriam função de garantir a estabilidade e a segurança das relações inter-individuais. Mesmo definições doutrinárias modernas destacam apenas esse caráter protetivo-repressivo (conjunto de regras de conduta individual, resolução de conflitos, reparação de erros e repressão de atos desviantes).

d) Enquanto a função repressiva do direito repousa sobre a ameaça de sanção, a função promocional atinge seus desígnios mediante premiações. Jhering já concebia essas formas de ordenação social como recompensas e penas, mas identificava a primeira como privativa da economia e a segunda da esfera jurídica. A técnica jurídica de cumprimento faria toda a diferença na caracterização das funções do direito.

4. Tal análise do direito está totalmente desvinculada dos estudos e preocupações que regeram o estudo do direito até então e impediram que essa perspectiva se desenvolvesse de maneira a entender suas transformações oriundas da sociedade.
É assim que a sociologia do direito passa a desempenhar papel decisivo, pois: [i] são problemas que requerem a consideração do direito no todo social (como subsistema de um sistema), requerendo o estudo das relações entre direito e sociedade, que permitem perceber e avaliar as transformações do direito; [ii] além disso, para avaliar as transformações de função do direito é preciso recorrer a técnicas de pesquisa empírica próprias das ciências sociais.
É necessário, entretanto, explicitar algumas dificuldades de ordem teórica para esse tipo de abordagem, especialmente com o esclarecimento de seus conceitos, no intuito de eliminar confusões terminológicas. A expressão “função do direito” apresenta em si diversas dificuldades.

[a] A palavra função dentro dos limites nas teorias sociais poderia ser entendida em relação à [i] sociedade como totalidade, como sistema de equilíbrio; ou em relação aos [ii] indivíduos que são partes componentes dessa totalidade, que interagem entre si e com o todo. É lícito combinar as proposições, mas não ignorar sua existência.
Quem afirma que a função do direito é a integração social, aborda o problema da função do direito do ponto de vista da sociedade no seu conjunto; se se aborda a questão aduzindo que a função do direito é tornar possível a satisfação de algumas necessidades fundamentais do homem, identifica-se o ponto de vista do indivíduo.
Tais abordagens na verdade traduzem uma concepção de sociedade, valores e indivíduos e tendem a prestigiar o núcleo central de cada concepção.
Ocorre que as funções enumeradas nem sempre representam o mesmo grau de influência nas sociedades analisadas. Há diversidade de fins específicos identificados pelo direito que variam conforme as contingências. Trata-se de lógica idêntica àquela da relação meio-fim (o fim, uma vez alcançado torna-se meio para realização de outro fim). Assim resta difícil encontrar critério para uma finalidade ontológica. Bobbio recorre à divisão entre ser e dever-ser para separar as perquirições de sociólogos e antropólogos (funções específicas) e do filósofo (função ontológica).

[b] Na expressão identificada, também o termo direito apresenta recomendações para seu correto entendimento. [i] Nem todos que se dispõem a fazer uma análise funcional entendem direito da mesma forma; [ii] mesmo que houvesse consenso quanto ao direito referido, seria muito difícil que uma única versão do conceito pudesse ser aproveitada para todas as possibilidades de abordagem.
[i] Prova da diversidade das acepções de direito são os atributos que lhes são conferidos pelos defensores da análise funcional. São relacionadas as funções repressiva em contraposição a distributiva, e ao mesmo tempo a contradição entre função de conservação (estabilização) e inovação. Tais atributos são legítimos mas sem qualquer correspondência entre si. Devem ser explicados por significado diverso do substantivo ao qual se referem.
A primeira distinção (repressão x distribuição) se refere aos remédios empregados pelo direito para exercer sua função primária de condicionar o comportamento do grupo social. A segunda (conservação x inovação) se refere aos resultados obtidos, considerada a sociedade em seu todo. A primeira observa como o direito opera. A segunda observa aquilo que as regras prescrevem ou permitem, bem como sua eficácia. Para analisar o primeiro é preciso tomar em conta o remédio. Para analisar o segundo necessário consideraras providências concretas impostas ou solicitadas.
Assim, o problema da função do direito abre caminho para duas respostas diferentes, considerados os diferentes critérios de abordagem.
[ii] O direito é tão vasto que uma análise funcional que não proceda às devidas distinções se torna de escassa utilidade. Há várias possíveis e o texto ocupa-se de três que reputa emblemáticas: direito privado/direito público; normas de conduta/normas de organização; normas primárias/normas secundárias.
A primeira distinção (privado x público) é necessária a medida que desenvolvem diferentes funções no interior do sistema jurídico, distinguindo as duas principais funções atribuídas ao ordenamento jurídico (permitir a coexistência de indivíduos por regras de equalização e solução de conflitos; ou função de direcionar interesses divergentes identificando objetivos comuns).
Outras análises, segundo Bobbio, são possíveis e devem seu nascimento (ainda que inconsciente) à análise funcional porque recorrem aos objetivos das normas para defini-las e não outros modelos como raciocínio e conteúdo.
É tradicional a referência a normas de conduta, para regulamentar a convivência entre indivíduos de modo a possibilitar que cada um busque seus próprios fins. Normas de organização buscam tornar possível a cooperação entre indivíduos para atingirem fins comuns.
No caso das normas primárias e secundárias é notório que H. L. A. Hart recorre a critérios funcionais para diferenciá-las e desmembrar as espécies de normas secundárias (normas de reconhecimento, mudança e juízo). Explica a estrutura partindo da função.

5. Essas são algumas das armadilhas enfrentadas por aqueles que se propõem a estudar a análise funcional do direito, buscando na especificidade da função do direito seu elemento característico. As tentativas nesse sentido, segundo Bobbio, ou não logram êxito em apresentar conclusões, ou simplificam indevidamente o fenômeno (acusação que faz à Luhmann com sua proposta de atribuir ao direito o papel exclusivo de estabilização das expectativas sociais). Esse mesmo fenômeno ocorreu com as demais teorias que ou se revelavam demasiado específicas ou demasiado genéricas. Ao final, Bobbio pugna pelo avanço de ambas as formas de análise que, se não são passíveis de serem integralmente combinadas podem andar lado a lado sem que uma obscureça a outra.

[1] As obras representativas dessa fase da vida intelectual de Bobbio são: Teoria da Norma Jurídica e Teoria do Ordenamento Jurídico, em que faz a transição da consideração individual da norma para uma consideração geral do corpo legislativo: “O direito é assim essencialmente composto dos enunciados do legislador (discursos) que tratam de esclarecer – a purificação da linguagem legislativa estando ao lado de uma interpretação lógico-gramatical da norma jurídica – a fim de determinar as condições factuais de aplicação, de preencher as lacunas e sistematizar os enunciados para formar um todo consistente (eliminação de antinonímias)” (Billet e Maryioli, 2005, p. 450). Em 1967 Bobbio passa a atacar alguns dos pressupostos que erigiu anteriormente, conforme identificado na conferência Essere e dover esser nella scienza giuridica”. A partir desse escrito passou a atacar o postulado positivista de que o conhecimento jurídico seria objetivo, de caráter puramente descritivo. Entende a partir de então que o raciocínio jurídico, como o do historiador, é um julgamento de avaliação de cunho pragmático.
[2] Relaciona-se como referência desse pensamento o russo-francês Georges Gurvitch, cujo método sociológico ligava a produção do direito à aceitação da comunidade social de onde emerge. Apostava numa diminuição do Estado e a reabsorção de funções que lhes foram atribuídas à sociedade. Bobbio atribui a perda de interesse nessa teoria ao movimento oposto que o Estado tomou na história a partir de então.
[3] Max Weber em Economia e Sociedade, Vol. I. É possível relacionar esse modelo social às considerações de Kelsen sobre o direito. O formalismo seria uma extensão dessa visão das instituições sociais.
[4] Nessa parte Bobbio cita estudos de Vilhelm Aubert (The social function of Law) e de F. Lombardi (La lógica dell’esperienza di J. Williard Hurst).


Referência: BOBBIO, Norberto. Análise funcional do direito em Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo: Manole, 2006.

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