quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

De William Rehnquist para Joaquim Barbosa ou Sobre a Liberdade de Imprensa no STF

Prezados amigos,

Ontem, dia 09/12 o blog completou 2 anos. Estou colocando muito menos pensamentos do que gostaria pois a dissertação está em fase final e me toma bastante tempo. Mas gostaria de agradecer mais uma vez as visitas, os comentários e o carinho dos amigos que comentam, no âmbito virtual ou pessoalmente. Para mim esse blog é uma ótima ferramenta de expressão e discussão. Espero que para vocês também seja e que cada vez mais outros colegas se juntem a nós no debate. Como no ano passado remodelarei o layout e farei uma nova pesquisa sobre os temas a serem debatidos na discussão do novo CPC. Peço apenas paciência. Assim que puder o farei.

Mais uma coisa: participem sempre. Já é difícil falar sobre determinados temas fora do âmbito da pós-graduação. É muito mais estimulante cultivar esse espaço quando temos o feedback da comunidade jurídica.

Grande abraço,

Daniel

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Curiosa, espirituosa e correta coluna de Elio Gaspari, publicada em O Liberal, 09/12/2009.

De: w.rehnquist@edu para j.barbosa@gov

Assunto: CENSURA à imprensa

Prezado ministro Joaquim Barbosa,

O senhor me detesta, mas achei que devia lhe escrever porque temos uma coisa muito forte em comum e eu precisava me comunicar com algum ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Hoje vocês vão votar o caso da censura imposta ao jornal "A Província de S. Paulo" (terá mudado de nome? Quem me fala dele é o Pedro de Alcântara, que por aí foi rei). Preocupo-me com a projeção histórica de vosso tribunal.

Ministro Barbosa, eu estive durante 33 anos na Corte Suprema dos Estados Unidos (1972-2005), 19 dos quais presidindo-a. Ajudei a desmanchar o ativismo judicial que o senhor aprecia. Para ser sincero, também não gosto de suas ideias, mas temos uma velha e dolorosa afinidade: a dor nas costas. Nossos inimigos vivem na eterna expectativa de que venhamos a renunciar. Sei de colegas seus que, além de torcer pela sua desdita, murmuram que sua saída ocorrerá em 2013. Fique firme. Minhas dores eram tamanhas que me viciei em Placidyl. Fui internado, alucinei e ouvi vozes. Como o senhor, eu não aguentava ficar sentado por mais de duas horas e, por isso, perdi bons filmes, como "O Resgate do Soldado Ryan". Aguentei a coluna estragada e morri no cargo em 2005, de câncer na tiroide, aos 81 anos.

A Constituição de vocês, como a nossa, proíbe a censura e o caso de hoje envolve o direito de a imprensa publicar gravações colhidas num inquérito cujo sigilo foi rompido. Eu sei o que há nele. Tenebrosas transações contra o erário e os princípios da moral pública e privada.

A censura será defendida sob o disfarce de sua condenação, desviando-se o debate para a questão de um sigilo que não foi quebrado pela imprensa. Bloquear a notícia não restabelece o sigilo, apenas estabelece a censura. É um truque antigo: "Sou contra a censura, mas ela não está em discussão... O que temos que decidir é outra coisa..."

Esse tipo de sustentação é eficaz em juízos de primeira instância. Com boa vontade, serve até para um recurso. Para a Suprema Corte, não. O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Carta Constitucional. Num caso desses, ou ele cresce decidindo o litígio na sua essência, a livre circulação das informações, ou acanha-se, confundindo-se em aspectos periféricos do litígio.

Tenho autoridade para dizer isso porque esse foi o meu caminho em 1971 quando, como vice-procurador-geral, tentei impedir a publicação de um conjunto de documentos secretos relacionados com a Guerra do Vietnã. Eu argumentei que não se tratava de censura, mas de defesa da segurança nacional. Em menos de um mês a corte julgou o caso e perdi por 6 a 3. Se eu tivesse prevalecido e o Pentágono liberasse mil páginas por ano, o serviço estaria concluído em 1978. A guerra acabou em 1975. Era de censura que se tratava.

A imprensa já fez muito mal ao mundo, mas a Constituição não manda que ela seja boa, manda que ela seja livre. Quem me conhece sabe que eu não gosto de jornais nem de jornalistas. Raramente vou além do noticiário esportivo e metropolitano, mas gosto das palavras cruzadas.

Diga aos seus colegas que, quando o Bill Rehnquist está do mesmo lado que os jornalistas, o caso é sério.

Cordialmente,

William Rehnquist

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Novo CPC: Início dos Debates

A maior preocupação contemporânea quanto ao Judiciário é sem qualquer dúvida a morosidade. Do observador leigo aos economistas, dos advogados aos juízes, dos estudantes aos professores, todos vêem nessa questão o maior desafio a ser enfrentado pelos instrumentos de justiça. Isso fica muito claro pela leitura de documentos governamentais como o “Pacto de Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano”, o estudo do Ministério da Fazenda “Reformas Microeconômicas e Crescimento de Longo Prazo”, e estudo do Banco Central do Brasil, através de sua “Nota Técnica n. 35 – Sistema Judicial e Mercados de Crédito no Brasil”, dentre incontáveis outros.

É impossível que alguém minimamente versado sobre o assunto negue a importância da celeridade processual para o Judiciário de nossos dias, amparado nas mais diversas razões de natureza jurídica, econômica, sociológica, política, etc. Essa queixa é sentida muito claramente em qualquer camada da população, culminando com um descrédito na capacidade do Estado em decidir os assuntos que lhes são submetidos. É necessário que sejam direcionados programas de combate a essa distorção do serviço estatal, com conseqüências sociais devastadoras.

Entretanto, devo revelar meu incômodo sobre como essa questão vem sendo tratada. Para alguns, é somente através da reforma do processo que essa finalidade será alcançada. Sem dúvida há instrumentos processuais não atualizados com as novidades informáticas ou dispensáveis num contexto de hipertrofia, mas isso não significa que o processo deve dispensar um debate sobre o potencial de legitimidade que deve prover aos seus instrumentos. Incomoda o fato dos processualistas estarem deixando essa noção de legitimidade em segundo plano. Prova disso é que a produção acadêmica brasileira em direito processual em momento algum dialoga com teorias sobre a argumentação jurídica ou mesmo com elementos da razão prática que se ocupam das condições de racionalidade da decisão em discussões passíveis de transferência ao próprio processo judicial.

Essa visão parece se perpetuar não somente em trabalhos acadêmicos, mas também nos projetos de lei que visam reformular o direito processual no país. Foi o que observei na entrevista que o Presidente da Comissão de Reformulação do CPC, Ministro Luiz Fux, concedeu a um programa de televisão o qual você pode assistir clicando aqui. Nela o Ministro deixa transparecer a preponderância do discurso da celeridade, sem debater em qualquer aspecto a questão da legitimidade das decisões judiciais.

Pior do que isso, o Ministro deixa transparecer ao falar de “tribunais de vizinhança” que compartilha de uma noção de legitimidade perigosa, baseada na autoridade do julgador sobre aqueles que postulam julgamento. Ainda que não seja um comentário direto sobre a orientação que a legislação processual deve tomar, certamente reflete os pressupostos sobre os quais essa reforma se baseará. O processo e a decisão que dele decorre são temas umbilicalmente ligados a legitimação. No mínimo, essa noção tem de ser mais debatida para que se tome uma posição consciente sobre o assunto.

As leis processuais habitualmente são bastante debatidas pelos acadêmicos brasileiros e pelas instituições judiciárias, OAB e Ministério Público antes de serem levadas a votação no Legislativo. A história mostra que diversas legislações processuais saíram diretamente dos bancos acadêmicos ou dessas instituições. Acredito que seja assim também desta vez, já que tantos processualistas de renome fazem parte da comissão de planejamento desse novo CPC. Mas é preciso ampliar esse debate para além dos assuntos que consomem os processualistas.

A legitimação das decisões judiciais é um fator de democracia. Não se pode abrir mão dela seja qual for o contexto de análise. É preciso ampliar o debate sobre o processo, já que é parte fundamental da própria concepção de direito.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A verdade e as formas jurídicas, de Michel Foucault

Entre os dias 21 e 25 de maio de 1973, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Michel Foucault apresentou cinco conferências que foram compiladas nos Cadernos daquela instituição e publicados diversas vezes ao longo do tempo em edições avulsas sob o título A verdade e as formas jurídicas.
Trata-se de obra bastante representativa do pensamento de Foucault, da temática ao seu desenvolvimento. O elemento central desse estudo é a análise de diversas formas de poder que estão subentendidas na sociedade contemporânea de modo a sustentar seu modo de ser. Para isso, sustenta que mesmo as formas de saber estão intimamente ligadas às formas de dominação que a organização social exige de modo a funcionar perfeitamente.
Bem ao seu estilo, Foucault tenta demonstrar isso através da história das instituições, em especial das instituições jurídico-penais, cujo aparato seria representativo do que chama sociedade disciplinadora inspirada no Panopticon de Bentham, desencadeada a partir das necessidades dos detentores do poder no século XIX de buscar a integração do homem com o ideal de produção capitalista.
Sua narrativa começa com o intuito de desvincular o conhecimento de uma linha evolutiva da razão, como uma progressão de saberes independentes, para vinculá-los e subordiná-los às relações de poder socialmente desenvolvidas. Daí porque o autor busca iniciar no Édipo-Rei sua análise, de modo a identificar em Sófocles e no relato que faz das formas de conhecimento das práticas judiciárias da época uma das representações do pensamento grego que visava desvincular o saber do poder tirânico. Segundo propõe, a confirmação da conspurcação de Édipo não é apenas objeto de revelação dos deuses e plausivelmente cogitado pelos próprios nobres, mas apenas é confirmado por humildes escravos, comprovando que a verdade independe da vontade, da posição social. Isso coincidiria com a proposta grega de poder do povo, já que o sujeito de conhecimento a determinar a verdade seria o próprio povo representado pelo coro “Nós que te chamávamos de nosso rei”.
Em Édipo se percebe a superação das formas jurídicas mais arcaicas do juramento que eram usados para resolver os litígios anteriormente. Há uma investigação, um inquérito, o qual o autor identifica amplamente com a questão do poder.
Seria na Baixa Idade Média (século XIII) que o inquérito teria se firmado como forma de conhecimento ao se passar do direito germânico arcaico ao direito feudal desse período um pouco mais centralizado. Na falta de uma autoridade julgadora, não havia sentido em buscar versões sobre verdade dos fatos, mas sim em propor testes para essas versões com base na vitória em duelos ou provações. Foucault sugere que o vocábulo prova (ao contrapô-lo a inquérito) advém dessa prática e não da análise de representações de um determinado fato passado. Com uma autoridade decisória, desenvolve-se uma necessidade de criar critérios de justificação para a decisão.
O inquérito como forma de conhecimento é distinta na antiguidade e na Idade Média. Com o desaparecimento do Império Romano e o declínio da civilização grega. Enquanto a antiguidade propunha um poder central justificado e via diversos bens de produção a serem protegidos como riqueza social, a Idade Média havia perdido essa referência de proteção dos bens produzidos, sendo o litígio, a contestação uma forma de fazer circular bens de produção bastante favorável aos mais poderosos. Isso somente encontra termo quando dos primórdios do poder central. Estabelecer tal forma de poder significaria criar uma ordem soberana que seria desrespeitada sempre que houvesse qualquer violação ao comando do rei (infração), caracterizando-o como o principal prejudicado por atitudes criminosas dos particulares. Daí a criação de todo um aparato para resolução dos conflitos que envolvia a conivência e enforcement de um poder autônomo.
Ante essa configuração do poder é que surgiu o inquérito, como forma de investigação da verdade e não mais provação das versões apresentadas. O objetivo não seria mais a vitória, mas o testemunho, como forma de prorrogar a autoridade, fazê-la presente. Eis a origem do inquérito e não a progressão da razão. Seria na necessidade do exercício do poder que estaria lastreada essa tecnologia. Tanto assim é que os outros setores somente desenvolvem essa forma de investigação posteriormente ao advento desse para o exercício do poder. O desenvolvimento cultural posterior ao advento do inquérito é que levaria ao Renascimento, definido pela generalização do inquérito como forma de saber. Mas é uma forma de autenticar a verdade, com a finalidade de exercer o poder.
Conforme a leitura do autor, esse mecanismo caracteriza a forma de poder necessária ao momento histórico referido que está na base da organização social ocidental. Entretanto, o destino dessa forma de conhecimento estaria atrelado a essas condições e toma novo rumo a partir do que denomina sociedade disciplinar, identificada desde a Europa do século XIX.
Por sociedade disciplinar o autor quer se referir a um dos traços característicos desse momento histórico simbolizado pelo panoptismo de Bentham (prédio em forma de anel com uma torre central equipada com venezianas semi-abertas, a permitir a observação dos indivíduos por aqueles investidos de poder sem que saibam quando estão sendo observados). Trata-se de uma forma de poder exercida sob os indivíduos de maneira específica e contínua, em forma de controle de punição, recompensa e correção, mais precisamente, “formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas” (p. 103). Essa sociedade exigiu uma forma diferente de saber, que Foucault caracteriza como exame.
Ao invés de buscar entender fatos retrospectivos, o exame tem a finalidade de verificar se o indivíduo está adequado ou não a normas, se está subjugado às relações de poder vigentes na sociedade. Essa forma de conhecimento não mais pretende observar o que passou mas conhecer as características do próprio indivíduo para lhe controlar a conduta de acordo com as necessidades sociais de integração dos indivíduos ao processo produtivo.
Também na passagem entre essas duas sociedades, é importante a análise do direito penal que incorpora as necessidades do controle e, assim, novos objetivos antes não verificados na teoria que o estabeleceu. É interessante notar a diferença entre a formulação de Beccaria do direito penal e o desenvolvimento que acabou tomando na sociedade do século XIX, em especial com relação às penas. Embora essa análise seja fundamental para caracterizar as relações entre epistemologia e poder, o autor diz que o mesmo reflete em diversas relações interpessoais dessa sociedade, seja na escola, fábrica, hospitais psiquiátricos, etc.
Seguindo os passos do pilar intelectual em que se apóia (Nietzsche), Foucault prepara o campo de desenvolvimento de Surveiller et Punir. Segue a linha em que recusa à razão ocidental e à forma de saber que representa a objetividade que pretende, vinculando a abrangência de sua prática às relações de poder vigentes na sociedade. A cristalização dessas através do direito, especificamente do direito penal, representa a consolidação institucional e a maturidade que assumem em cada sociedade e indicam, segundo o autor, parâmetro confiável à investigação.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A Arbitragem vista pelo Judiciário

A tradição jurídica brasileira historicamente não reserva espaço para pesquisas empíricas, condenando a produção jurídica a especulações que nem sempre fazem sentido, nem muito menos atingem os objetivos a que se propõem. Isso é verificado especialmente no direito processual, cujas reformas em diversos momentos, conforme assinala Barbosa Moreira, careceram de maiores estudos da realidade.
É truísmo dizer que as análises empíricas são fundamentais para orientar a produção jurídica. Somente através dela é possível constatar os problemas que serão abordados pelo direito, assim como seu estudo contribui decisivamente na proposição das soluções destes. Trata-se de aporte qualitativo, o qual se afigura imprescindível para um estudo profícuo e responsável dos mecanismos jurídicos.
Ainda hoje, pouquíssimos estudos dessa natureza são desenvolvidos no país. Certamente em quantidade insuficiente a demanda de modernização das instituições nacionais.
A Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e o Comitê Brasileiro de Arbitragem são exceções desse panorama. Tais instituições acabam de divulgar os resultados de uma pesquisa que problematiza a relação entre Judiciário e arbitragem, verificando a acolhida estatal de um instituto promissor diante da configuração da sociedade contemporânea. Os interessados podem conferir o resultado no seguinte sítio eletrônico http://www.cbar.org.br/bib_pesquisa_fgv_cbar.html
Meus cumprimentos às instituições envolvidas, pela seriedade do trabalho e à contribuição que representa para um estudo mais detalhado da matéria no país. Cumprimento ainda todos os pesquisadores envolvidos na pessoa de Daniela Monteiro Gabbay, minha conterrânea, com quem compartilhei diversas salas de aula desde a escola até a faculdade, a quem tenho a honra e o prazer de chamar de amiga.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Fábula


L'Âne portant des reliques
(Jean de la Fontaine)

Un Baudet, chargé de reliques,
S'imagina qu'on l'adorait.
Dans ce penser il se carrait,
Recevant comme siens l'Encens et les Cantiques.
Quelqu'un vit l'erreur, et lui dit:
“Maître Baudet, ôtez-vous de l'esprit
Une vanité si folle.
Ce n'est pas vous, c'est l'Idole
A qui cet honneur se rend,
Et que la gloire en est due.”
D'un Magistrat ignorant
C'est la robe qu'on salue.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Mérito e Objeto do Processo segundo Dinamarco

1. Apesar de ser uma palavra corrente no vocabulário processualista, há uma confusão na legislação e na doutrina sobre o que chamar de mérito. A definição do que é mérito é importante para o processo porque noções fundamentais a ele dependem desse conceito: [i] diferenciar mérito e questão de mérito; [ii] diferenciação da matéria processual para determinar ordem e momento de apreciação; [iii] decisão sobre o mérito projeta eficácia para fora do processo e obtém autoridade da coisa julgada, enquanto as questões a ele referentes.

2. Considerando a inércia como princípio tradicional e legitimador da jurisdição, é necessário sempre um ato inicial proveniente das partes (autor) que fixam os limites da prestação jurisdicional a ser exercida. A demanda (ou ação) é o veículo pelo qual se leva a juízo a pretensão de emissão de um provimento jurisdicional (objeto imediato) a um bem da vida (objeto mediato), reconhecendo-se 2 planos distintos do ordenamento jurídico: processual e substancial.

3. Nessa definição estão caracterizados os 3 elementos identificadores da demanda: partes; pedido; causa de pedir. Importantes para delimitar o provimento a ser emitido indicando: natureza, objeto e extensão, delimitam seus fundamentos e indicam alcance subjetivo desejado. É a demanda que define o objeto do processo não sendo lícito ao juiz alterá-lo. Por isso o objeto do processo é importante: ponto de partida para análise e decisão. O processo gira em torno dele.

4. Objeto do processo é aquilo que se coloca diante do juiz para julgamento (res in iudicium deducta). Serve para delimitar provimento; identificar litispendência e coisa julgada, prejudicialidade, declaratória incidental, alteração e cúmulo de demandas.
Infere-se que objeto é mérito da causa: a busca desses conceitos revelam-se a mesma busca.

5. Há 3 noções principais do que considerar mérito desenvolvida pelos estudiosos do direito processual

[a] Mérito como questão de mérito: segundo o pensamento de Carnelutti, questões são dúvidas quanto a uma razão; questões de mérito são pontos controvertidos, dúvidas referentes ao mérito e não o mérito em si. São analisadas na fundamentação da sentença, enquanto o mérito é analisado no dispositivo. No processo há muitas questões (substanciais ou processuais; fato ou direito), mas não resumem o mérito que se refere a prestação jurisdicional específica referente a um bem da vida, adequadamente vinculada na demanda. As questões não são abrangidas pela coisa julgada – são apenas fundamentos sobre os quais se pode ter outra opinião posteriormente; o mérito é – pois é a pretensão que tem de ser decidida. Do contrário, a coisa julgada abrangeria também os fundamentos da sentença proferindo soluções definitivas para interpretação do direito e determinação da verdade, o que se nega pelo art. 469 do CPC.

[b] Mérito como demanda (Chiovenda): vários autores associam o mérito à demanda inicial proposta em juízo, com a idéia de que é de mérito a sentença que sobre ela se manifesta (parece que é isso que quis dizer o 269, I). Esse termo se confunde com pedido e ação. Dinamarco não crê que demanda seja o mérito. É apenas o veículo de algo externo ao processo é anterior a ele. É o veículo da pretensão do demandante. Dizer que o mérito é a demanda significa dar maior peso ao continente do que ao conteúdo. Pedido é apenas o elemento formal. É a pretensão que seria o elemento substancial de relevância social.

[c] Mérito como lide tout court: Mérito ou objeto do processo seria a relação jurídica substancial controvertida em juízo. Não se pode afirmar isso porque é o processo que deve averiguar se a relação jurídica existe ou não (levaria também a conclusão de que o processo de execução não tem objeto – com o que Dinamarco discorda).

6. O CPC faz relação entre lide e mérito com inspiração no conceito de Carnelutti, o que não foi feito pelo italiano. Buzaid tentou misturar Carnelutti e Liebman para quem lide é o fundo da questão, o que equivaleria a dizer, o mérito da causa, mas este jamais aceitou o conceito de lide tal como Carnelutti sempre procurando dar-lhe feição jurídica (mérito: pedidos [forma] + lide ou conflito [substância] = conflito moldado pelas partes). Critica a Liebman: a seguir esse conceito não haveria objeto sem contraposição de pretensões. No caso de revelia ou reconhecimento do pedido, por exemplo, não haveria objeto. Lide só presta para justificar a jurisdição didaticamente.

7. A palavra mérito provém de exigir, cobrar (mesma origem da palavra meretriz, verbo latino: mereo ou merere), nesse caso o exame de um juiz sobre a pretensão que apresenta. Pretensão, segundo Carnelutti, é exigência de subordinação do interesse alheio a um interesse próprio. Demanda é veículo da pretensão, mas não lhe atribui qualquer significado. É a noção mais aceita de ser relacionada com mérito na ciência processual brasileira (provimento processual + bem da vida material).

8. No processo existem duas ordens (binômio) de questões: mérito e pressupostos de admissibilidade (processuais e condições da ação – considerando a categoria ampla). Essas questões são objeto do conhecimento do juiz e não se confundem com o mérito em si, que delimita a atividade jurisdicional. Poderia fazer menção a cognição vertical e horizontal?

9. Se mérito é pretensão, pode se dizer que há mérito na fase de execução e na fase recursal?
Execução: Não há julgamento de mérito na execução, mas há mérito que pode ser discutido nas ações incidentes. O que impede a discussão é a natureza atribuída ao título executivo, daí a necessidade de discussão em processos auxiliares. Julgamento do processo auxiliar extinguiria a execução ao fulminar o titulo executivo.
Recursos: Podem ou não ter o mesmo mérito/pretensão que o mérito da causa: agravos nunca têm o mesmo; apelação pode ter ou não.

10. Centrada na ação, a tradição italiana e brasileira não trata muito do conceito de objeto do processo, pois se centra na ação e parte dessa noção para identificar o conceito. Os alemães ao contrário têm o objeto do processo como uma espécie de pólo metodológico ao redor do qual se constrói o direito processual.

11. Os alemães indicam a existência de uma pretensão de direto processual (ZPO, p. 147) de exigir a tutela do estado e pretensão de direito material (BGB, p. 194). Mantém-se, entretanto, os objetos mediato e imediato da pretensão.
A pretensão incide decisivamente sobre determinados institutos jurídicos: [i] cumulação de demandas; [ii] modificação da demanda; [iii] litispendência; [iv] coisa julgada material. Além disso, a importância se dá para todo o procedimento sendo fundamento de uma séria de formas e fenômenos.
Há 3 diferentes correntes de pensamento para caracterizar a pretensão processual:
[i] pretensão como afirmação do direito material;
[ii] pretensão como fator exclusivamente processual;
[iii] pretensão como pedido.

12. Dinamarco defende a última corrente: pretensão como pedido, sem qualquer interferência do fundamento da demanda (estado de coisas).
Quem elaborou essa idéia foi Schwab. Mas ao projetar sobre os institutos que mais diretamente sofrem a influência do conceito, encontra dificuldade referente à coisa julgada material. Se o objeto do processo for só o pedido e não a causa de pedir a coisa julgada material teria efeito sobre toda e qualquer demanda sobre o mesmo objeto ainda que apoiado em fatos diferentes.
Dinamarco discorda: haveria uma confusão de Schwab entre coisa julgada e exceção da coisa julgada (que impede a repetição de causas decididas). Por isso ele afirmaria que o objeto não pode ser o pedido, pois isso faria que a coisa julgada atingisse outros pedidos idênticos. Na verdade o conceito de objeto é esse mesmo e é compatível com a coisa julgada que se limita ao pedido, a imutabilidade dos efeitos é que exige mais elementos para operar. Imuniza-se os efeitos da sentença para estabilizar a relação jurídica; impede-se o julgamento do mérito se concorrerem os elementos da ação.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Necessidade de Critérios para Valoração da Prova

1. Nenhuma das concepções de direito, seja na atualidade ou no passado, deixou de estabelecer íntima relação entre aquilo que se verifica em sociedade e a aplicação do direito. O fato da sociedade é inerente ao raciocínio jurídico porque este o toma como antecedente lógico. É em atenção às especificidades de determinado fato que o direito se manifestará.
A idéia do direito é intimamente ligada com a realidade que observa. Esta é, além de origem, o próprio fim da atividade jurídica: dela nasce e para ela se reporta na medida em que tem como mais proeminente de suas finalidades a regulamentação da sociedade segundo seus próprios padrões.
Diante dessa vinculação, a percepção dos fatos como ponto de partida para aplicação e construção do direito no caso concreto ganha importância. É em face de sua constatação que se deflagra a atividade jurídica e, principalmente, se decide por sua efetivação de tal ou qual maneira.
A análise dos fatos, nesse prisma, deve ser objeto do próprio direito já que esse somente será aplicado corretamente enquanto impuser ao intérprete a consideração de suas fontes possibilitando sua valoração.
Essas breves considerações não deixam dúvidas de que o estudo do direito, nesse particular, deve observar diretamente questões lógicas e epistemológicas centrais: Como devem ser determinados os fatos para incidência do direito? Quando seria correto considerar-se provada uma hipótese? Quais os critérios de avaliação envolvidos nesse processo?
Apesar dessas considerações serem tidas até certo ponto como lugar-comum, é assustador notar a falta de estudos doutrinários referentes aos problemas que a consideração dos fatos enseja para o direito, relegando tais questões ao segundo plano como não se sujeitassem a controvérsias ou conseqüências para o desempenho da jurisdição.
2. Dentre os estudos existentes sobre a prova e a cognição judicial, uma das mais importantes conclusões identificadas refere-se a separação entre a idéia de verdade e os objetivos do processo. Diante das limitações de cunho epistemológico (possibilidades do conhecimento humano) e de cunho jurídico (valores protegidos pelo direito e premência da decisão judicial), logo se percebeu a impossibilidade de conciliação ininterrupta entre os termos.
Essa constatação passou para a história sob a conhecida fórmula que contrapõe verdade formal e verdade material, preconizada ainda em 1914 por Francesco Carnelutti.[1] De formas distintas, a proposta de compreensão do autor italiano foi perpetuada na processualística de várias formas distintas. Não foram poucos os que, ao considerarem inalcançável a verdade, pugnavam pela certeza judicial[2] ou ainda por decisões embasadas na verossimilhança.[3]
Essa discussão é sistematicamente negligenciada pelos ordenamentos jurídicos. As regras jurídicas sobre prova dificilmente são claras quanto à matriz de pensamento ao qual obedecem, causando diversos problemas no desenvolver de suas soluções.
O ordenamento jurídico brasileiro é expressão clara da má compreensão dessa discussão. É essa a idéia que transparece na nossa própria legislação processual civil, conforme, entre tantos outros, os art. 282, VI; 332; 339, 378 do CPC, onde se emprega indiscriminadamente a palavra verdade como expressão do objetivo da atividade probatória.
Não obstante, a negligência da discussão, muitas repercussões dessa indefinição podem ser notadas na maneira de perceber as regras da prova nos sistemas processuais modernos. A má compreensão da questão dos objetivos do processo tem direta relação com os instrumentos dogmáticos construídos para desenvolvimento da atividade probatória em juízo.
Uma vez gerado consenso sobre a impossibilidade do processo judicial atingir a verdade e tê-la como único objetivo, a questão seria como organizar as instituições processuais em torno das possibilidades de cognição do processo judicial.
3. Dentre os institutos jurídicos relacionados a prova, talvez os mais sacrificados sejam aqueles referentes à sua valoração, a qual é concebida sem maiores parâmetros de controle.
O art. 131 do CPC dispõe sobre o princípio do livre convencimento motivado, como vetor das decisões sobre questões de fato apresentadas ao Judiciário brasileiro. Trata-se de norma que impõe ao processo judicial restrições importantes à cognição dos fatos inerente à sua atuação.
Ao abordar o tema, doutrina e jurisprudência normalmente se limitam a distinguir esse sistema de apreciação e decisão sobre a prova em comparação com outros sistemas significativos na história do processo, tais como a prova tarifada ou o convencimento íntimo, com o propósito de afirmar a superioridade da solução vigente.[4]
Argumenta-se que o livre convencimento motivado é o sistema mais adequado para a valoração da prova porque equilibra com maior probabilidade de êxito o controle do poder jurisdicional quando da interpretação dos elementos trazidos aos autos (objetivo do mecanismo de tarifação da prova) e a liberdade de interpretação necessária ao exercício desse poder que deixa os juízos mais capazes de compreender corretamente a situação de fato (instituída através da outorga do convencimento íntimo). Tal se afigura especialmente perante estudiosos nacionais.[5]
Essa proposta de compreensão da cognição judicial, entendida de maneira sistemática com outros dispositivos legais, pretende controlar o juízo de fato ao estipular os seguintes limites: a) convencimento deve seguir os ditames do conhecimento racional; b) deve resultar dos elementos colhidos nos autos; c) deve ser justificado quando da decisão sobre os fatos; d) deve obedecer, em certos casos, a valoração prévia da lei (v.g. presunções legais relativas ou limites de admissão ou eficácia de meios de prova).[6]
4. Tais normas surgiriam como controles suficientes da argumentação judicial relacionada aos fatos da causa, as quais impediriam arbitrariedades e proporcionariam uma decisão legítima. Por vezes, entretanto, tais critérios são considerados falhos em relação ao objetivo de afastar excessos por parte dos juízes na interpretação do conjunto probatório:

“[...] o emprego dessas técnicas e o respeito aos princípios e garantias mencionados correm o risco de não afastar de todo a onipotência judicial. O problema é muito mais complexo e se mostra bem possível que o órgão judicial, mesmo com uma autêntica proclamação de princípios, ao justificar determinada visão dos fatos, lance mão de critérios vagos e indefinidos, utilizando de fórmulas puramente retóricas despidas de conteúdo, aludindo, por exemplo, à ‘verdade material’, ‘prova moral’, ‘certeza moral’, ‘prudente apreciação’, ‘íntima convicção’ e expressões similares, autênticos sinônimos de arbítrio, subjetivismo e manipulação semântica por não assegurarem nenhuma racionalidade na valorização da prova, implicarem falsa motivação da decisão tomada e impedirem, assim, o controle por parte da sociedade, do jurisdicionado e da instância superior.”[7]

Essa noção é compartilhada por diversos estudiosos da prova judicial, ao se deter mais seriamente no estudo do livre convencimento motivado, ao ponto de parecer unânime que – não obstante todos os ganhos que esse sistema representa para a obtenção do juízo de fato de maneira mais adequada – há custos a serem considerados.
5. Dessa maneira, tem-se que o livre convencimento deve envolver uma apreciação correta da prova que não está isenta de critérios de ordem objetiva que englobam regras básicas do conhecimento humano verificável e na teoria da argumentação aplicada à cognição judicial.[8] A decisão sobre fatos nessa seara, como de resto em toda decisão social, deve repousar sobre base epistemologicamente correta, para que goze de aceitabilidade no corpo social.
Assim, a liberdade (no sentido de independência) do juízo probatório não pode significar ausência de regras para valoração e decisão sobre tal matéria.
Tradicionalmente duas vertentes foram desenvolvidas nesse sentido: a primeira de cunho psicológico que tinha por objetivo ressaltar as questões emocionais relacionadas com a decisão judicial; a segunda, que tinha por objetivo vincular a decisão a pressupostos racionais. Ambas têm o propósito de minorar o subjetivismo judicial e diminuir os erros na cognição dos fatos.[9]
Enquanto afigura-se difícil aos institutos jurídicos criar mecanismos de controle psicológico, dadas as condições particulares de cada julgador em face de diferentes casos, novidades podem ser propostas quanto aos procedimentos racionais envolvidos.
Além dos esforços para esmiuçar a argumentação referente a esse tipo de decisão, verificado em estudos referentes à lógica[10], o direito processual pode criar diversos outros critérios de maneira possibilitar decisões mais legítimas em matéria de fatos na cognição judicial, conforme se verifica na experiência estrangeira.
As reflexões comuns na processualística brasileira são pertinentes para exigir da decisão judicial uma fundamentação e esboçam controles ao arbítrio. Entretanto, dificilmente se sustentará que esses critérios orientam corretamente as decisões desse tipo. Eles deixam em aberto muitas questões seriamente vinculadas aos objetivos da instrução probatória.
6. Conforme se verifica, aborde-se paradigmas de verdade, certeza ou verossimilhança, nenhum deles terá qualquer resposta sobre critérios de consideração ou suficiência da prova. Isso porque o maior problema de não existirem considerações a restringir tal atividade jurisdicional é liberá-la ao arbítrio do juiz conforme seu convencimento subjetivo, apresentando razões que o levaram a tanto.
Organizar dessa maneira as regras probatórias significa passar ao processo insegurança desmedida por conta da liberação do juiz à questão da suficiência da prova, deixando as partes sem referência sobre a desincumbência de seu ônus de provar suas alegações.
Não fosse somente isso, equipara indevidamente situações cujas diferenças são relevantes: certamente não são equivalentes os critérios de suficiência de prova para aplicação de sanções penais, de indenizações civis ou questões de aferição do dano e da reparação ambiental. Os graus exigidos de corroboração dos fatos pelas provas admitidas no processo são evidentemente distintos conforme os casos julgados, critério totalmente desconhecido da legislação brasileira e das discussões doutrinárias recentes.
Diante da falta de reflexões em relação ao tema da valoração probatória nos estudos nacionais, se faz imprescindível a consideração desse importante tema não somente do direito processual como técnica, mas da própria aplicação do direito como conjunto de normas de caráter epistemológico-jurídico.
A aplicação do direito exige, como todos os outros ramos do conhecimento humano, estudos que esclareçam as condições de interpretação de seus fenômenos probatórios.



Notas:
[1] “Casi toda la doctrina tiene conciencia más o menos sincera de esta alteración del significado corriente de la palabra prueba, y tras haber advertido que prueba es la demonstración de la verdad de um hecho, siente casi siempre la necesidad de precisar su significado jurídico completando así la definición: demonstración de la verdad de un hecho realizada por los medios legales (por modos legítimos) o, más brevemente, demonstración de la verdad legal de un hecho. Una definición de este gênero no puede em rigor reputarse inexacta, pero, para no aparecer como tal, debe ayudarse con una metáfora que vimos usada em la antítesis entre verdad material y verdad formal: en efecto, la verdad que se obtiene con los médios legales, sólo puede ser la segunda y en manera alguna la primera. Decir, por tanto, que prueba en sentido jurídico es la demonstración de la verdad formal o judicial, o decir, em cambio, que es la fijación formal de los hechos discutidos, es, en el fondo, la misma cosa: aquélla es sólo una expresión figurada y esta uma expreción directa de um concepto esencialmente idêntico.” CARNELUTTI, Francesco. La prueba civil. 2ª. Ed. Trad. Niceto Alcalá-Zamora y Castillo. Buenos Aires: Depalma, 2000, p. 44.
[2] ROSEMBERG, Leo. La carga de la prueba. Buenos Aires: EJEA, 1956, passim.
[3] CALAMANDREI, Piero. Verità e verosimiglianza nel processo civile in Opere Giuridiche. Padova: Morano Editore, vol. V., 1972.
[4]A título de exemplo, colacionamos algumas obras que apresentam sem maiores debates o sistema do livre convencimento motivado como derradeira evolução do sistema de apreciação da prova: CINTRA, Antônio Carlos Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 23ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007. SILVA, Ovídio A. Baptista; GOMES, Fábio Luiz. Teoria geral do processo civil. 4ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 303-307. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: Jus Podivm, 2007, 67-70.
[5] Para um apanhado histórico mais adequado da questão, verificar: CHIOVENDA, Giuseppe. Istituzioni di diritto processuale civile. 3ª.Ed. Napole: Jovene, 1947, v. 1, n. 32, p. 116 e seguintes.
[6] DINAMARCO, Cândido R. Instituições de direito processual civil. 5ª. Ed. São Paulo: Malheiros, vol. III, 2005, p. 105.
[7] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil. 2ª. Ed. Rev. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 162.
[8] GHIRARDI, Olsen A. Logica de la casación: errores in cogitando in Scritti in onore di Elio Fazzalari. Milano: Giuffrè, 1993, p. 493.
[9] NOBILI, Massimo. Il principio del libero convencimento. Napoli: Giuffrè, 1974, p. 55.
[10] FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 91-138.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Relação entre demandas individuais e coletivas: um grande problema para o direito processual (I)

1. Um dos temas mais discutidos atualmente quanto à jurisdição civil e seu modo de atuação processual coloca ao centro do debate o impacto causado pelo advento da tutela coletiva, o qual implica em modificações que vão desde possibilidades de submeter novas matérias à adjudicação até a reformulação de técnicas processuais que a compõem.[1]

A tutela de bens coletivos alcança efetivação de todas as construções jurídicas que atribuam direitos a um grupo, confirmando uma jurisdição apta a julgar conflitos de grandes repercussões sociais que supera a noção do direito bilateral característico das relações de propriedade. Considerando as novas características do direito a ser tutelado, a técnica processual deve se reestruturar para alcançá-los, revisitando antigos princípios e conceitos.

Isso tem sido reconhecido no Brasil não somente na academia, mas também com o advento de diversas leis sobre a matéria, tais como as leis da ação popular, da ação civil pública, da improbidade administrativa, do abuso do poder econômico, do consumidor, dentre outras.

2. Debates doutrinários recentes, analisando as implicações da nova tutela em relação ao papel tradicional da jurisdição, abordam o tema da interseção entre ações coletivas na defesa de direitos difusos e coletivos em sentido estrito e ações individuais, gerando um debate polêmico em face do sistema processual vigente.

Com efeito, na defesa de direitos necessariamente coletivos, é possível que haja situações onde ações individuais e ações coletivas versem sobre o mesmo objeto que é necessariamente indivisível.

Esta não é uma situação rara, diante das repercussões às esferas individuais que a lesão a um bem coletivo pode provocar. Muitos exemplos podem ser apresentados sobre tal situação: publicidade enganosa, apesar de atingir direito difuso pode também causar lesões a direitos individuais, assim como uma lesão de abuso de direito econômico pode atingir mais diretamente um indivíduo do que outros, ou ainda uma lesão ambiental cuja repercussão geral não é muito sentida pode comprometer especificamente uma ou algumas propriedades privadas, etc.

Um mesmo fato pode gerar múltiplos efeitos, atingindo partes que podem recorrer ao Judiciário sustentando dimensões de interesses e direitos diversas. Daí porque a tutela coletiva em tais situações não exclui a tutela individual, desde que ambas se restrinjam aos seus objetos específicos. É essa a disposição do CDC (art. 104), diploma que regulamenta todas as ações necessariamente coletivas na legislação brasileira (referentes a direitos difusos e coletivos em sentido estrito).[2]

3. O objeto do processo segue, conforme a legislação brasileira, a delimitação que lhe é dada pelas partes até o saneamento da demanda. Diante dessa técnica, ações individuais e coletivas podem se desenvolver sem jamais se verificar qualquer intersecção, adstringindo-se os julgamentos de diferentes ações a diferentes objetos. Em geral, a tutela coletiva se refere a um ilícito que atinge direitos do grupo como um todo, enquanto a tutela individual se restringe a remediar o dano sofrido pelo indivíduo.[3]

Por outro lado, e em sentido que não encontra regulação na legislação brasileira, tais ações podem estar inevitavelmente ligadas, caso os elementos objetivos da demanda veiculada sejam os mesmos ou guardem entre si semelhança suficiente.

Não seria difícil vislumbrar essa situação. Para utilizarmos os exemplos acima, bastaria que em determinada ação individual o consumidor, além de pedir reparação de danos decorrentes de propaganda enganosa, submetesse ao judiciário também pedido para cessação do ilícito. Facilmente se vislumbraria tal questão também nas tutelas de dano e ilícito ambiental e de abuso do poder econômico.

Qualquer ação coletiva que fosse destinada a tutelar tais bens coletivos, encontraria nas ações individuais em curso grandes áreas interseção diante de pretensões idênticas referentes à obrigação de fazer.

4. Uma análise desses tipos de conflito pela perspectiva econômica, identifica a relevância da questão apresentada. Sempre haverá incentivos diferenciados dentro de um mesmo grupo para que se busque tutela jurisdicional sobre o assunto, diante das situações diferenciadas experimentadas por seus membros.[4]

Tal fenômeno, apesar de não encerrar em si os motivos que levam os indivíduos a proteção do interesse de grupo, explica o quão comum é a situação e como se inclina o sistema à diversidade de ações sobre a mesma questão, pois aqueles que são diretamente atingidos sempre terão mais motivos para agir do que os demais.

Isso porque, no nosso sistema em que prepondera o amplo acesso a demanda (CF/88 art. 5º, XXXV), nada impede os mais atingidos (dependendo do bem coletivo considerado pode chegar a milhões de indivíduos) ingressem com diferentes ações cujas conseqüências podem ser extremamente perigosas à ordem jurídica através dos conflitos entre decisões que podem surgir.

Some-se a isso o papel independente das instituições autorizadas a propor ações coletivas segundo a legislação brasileira, diante de sua legitimação concorrente e disjuntiva que apesar de excluir os indivíduos de propor ações coletivas não é capaz de impedir a propositura de ações individuais voltadas à mesma tutela. Resulta tal questão em permissividade de múltiplas ações coletivas coexistirem com as demais individuais. [5]

Não se ignora a restrição que é feita pela legislação para a propositura de ações coletivas por indivíduos, com o reconhecimento e respaldo unânime da doutrina.[6] Mas dessa premissa da interpretação do sistema não decorre a conclusão de que os indivíduos não poderiam levar a juízo questões individuais quando essas fossem vinculadas a questões coletivas, ante ao conteúdo que se reconhece ao princípio da inafastabilidade do Judiciário.[7]

As hipóteses, portanto, não podem ser consideradas raras nem cerebrinas. É real e até mesmo provável que a multiplicidade de demandas e o conflito prático de decisões aconteçam.

5. Nos casos em que isso ocorre, as regras processuais apontam para uma concorrência de ações difícil de resolver, que constitui um do maiores problemas atuais do processo coletivo na legislação brasileira. Que resposta pode ser sugerida para essa questão? Debatamos.

[1] SALLES, Carlos Alberto de. Processo Civil de interesse público. In: SALLES, Carlos Alberto de (Org.). Processo Civil e Interesse público: o processo como instrumento de defesa social. São Paulo: RT, 2003. Ver também GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos interesses difusos. Revista de Processo, São Paulo, n. 14/15, abr./set. 1979. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. São Paulo: RT, 2006.
[2] Sobre a existência do microssistema, verificar: GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 9a. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2007. NERY, JR. Nelson. O ministério público e as ações coletivas, in MILARÉ, Édis (coord.) Ação civil pública: reminicências e reflexões. São Paulo: RT, 1995.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica: arts. 461, CPC e 84, CDC. 2a. Ed. São Paulo: RT, 2001.
[4] SALLES, Carlos Alberto de. Políticas públicas e a legitimidade para defesa de interesses difusos in Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 121, 2006, p. 38-50
[5] Sobre a legitimidade para propositura de ações coletivas: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A ação popular no direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses difusos”, in Temas de direito processual - 1ª Série. São Paulo: Saraiva, 1977.
[6] VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: RT, 2006.
[7] DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5a. Ed. São Paulo: Malheiros, tomo I, 2005.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Revolução Tecnológica e Sociedade Contemporânea


Para Filipe

1. Diversas análises dão conta de que a sociedade contemporânea vive um momento de redefinição em sua estrutura organizacional e na vida dos indivíduos.
Há uma proposta de compreensão da sociedade que considero particularmente interessante, a partir de uma nova forma de sua organização. Partindo da idéia de que houve uma verdadeira revolução com o advento da tecnologia da informação, identifica-se uma grande mudança que penetra todas as esferas da sociedade.
A revolução tecnológica da informação consiste no advento de ferramentas que modificaram a forma de produzir, de se comunicar, de viver na atualidade. Refere-se à tecnologia de informação como todo o conjunto convergente de tecnologias em telecomunicações, microeletrônica, computação, engenharia genética, etc.
Caracteriza essa revolução tecnológica a aplicação dos conhecimentos e da informação em processos de sua geração, processamento e comunicação visando uma realimentação cumulativa que promove inovação e uso em velocidades extremamente rápidas. As novas tecnologias não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos, onde usuários e criadores se confundem diante da criação se dar no decorrer do uso.
Criam-se condições para um ambiente de compartilhamento de informações por meios de comunicação e troca de informações onde a mente humana ganha amplificação. Com isso, pela primeira vez na história, a mente humana é força direta de produção e não apenas um dos elementos do processo produtivo. Assim não há apenas uma matriz produtora de conhecimento, mas seu constante trânsito e produção.
Essa tecnologia implica em uma nova forma organizacional em que não há um vértice de comando, controle e decisão. Tudo é difuso e disseminado nos diversos nós que representam os diversos pontos de leitura e proposição da informação, seguindo uma lógica da rede. Reproduz-se e perpetua-se, ainda que sem intenção, a estrutura descentralizada e interconectada, por isso mesmo impassível de um controle único.
É exatamente a não-coordenação, a flexibilidade da lógica das redes que garante o dinamismo dessa estrutura. Tal abertura indica seu crescimento exponencial e cada vez mais penaliza os que estão fora de sua amplitude criativa e compartilhadora. A flexibilidade da rede é repassada diretamente para seus componentes que passam a responder aos seus movimentos.
A tecnologia de informação tem capacidade de penetração na vida social mais rápida e decisivamente do que qualquer outra experiência na história de modo que obstaculiza o funcionamento de qualquer atividade que se dê fora de seus domínios, demandando uma certa padronização e convergência de mecanismos de acesso para tornar possível o fluxo que lhe é característico.
Assim, a tecnologia – que se transforma em modelo necessário de organização –, moldam seus usuários diante de padronizações e também é moldada por eles no seu desenvolvimento.
O exemplo mais representativo dessa revolução tecnológica é a internet porque possibilita espaço único onde todos se encontram e conseguem estabelecer vínculos de comunicação em tempo real onde distâncias desaparecem. Cria-se um mundo virtual a ser explorado e interconectado com a vida não-virtual.
Outra característica determinante da rede é sua aptidão totalizante. Daí porque se identifica nessa forma de organização o problema da exclusão.
Segundo dados do IBGE de 2005, 32% da população com idade superior a 10 anos teve algum contato com a internet; de acordo com o Internet World Stats o número de internautas brasileiros cresceu 2.152% entre 1997 e 2005; o instituto Nielsen Netratings afirma que 22,1 milhões de internautas com acesso doméstico no Brasil (fontes – sítio virtual do IBGE e e-commerce.org.br).
Na medida em que a rede se desenvolve, decaem as possibilidades de alcançar campos que não estejam abrangidos por ela provocando a marginalização daqueles não envolvido em seus processos. Trata-se de movimento irresistivelmente impositivo e ao mesmo tempo formalmente aberto e substancialmente adaptável em termos de desenvolvimento.
As conseqüências dessa revolução tecnológica para a sociedade é incrivelmente extensa e tem de ser medida em muitos dados para se ter uma comprovação exata. Alguns aspectos constatados em caráter provisório podem ser úteis para ilustrar essa assertiva.

2. Seguindo as características da revolução tecnológica apontada, a sociedade contemporânea é amplamente impactada em todos os seus setores por essas transformações. Surgem transformações no plano da economia, das instituições, da política, da cultura, etc. Tal impacto costuma ser designado por globalização, fenômeno comumente relacionado ao redimensionamento do tempo e do espaço da vida mundial diante da interconexão em tempo real promovida a partir das inovações.
Em vista desses fatores, a economia passa a se organizar de forma absolutamente distinta de tempos passados, abandonando o modelo de substituição de importações e buscando a integração nos mercados globais diante da rapidez e mobilidade pelas quais os investimentos podem ser transferidos para diferentes cantos do mundo. O mecanismo mais eficiente aos fins econômicos passa a ser o capital financeiro, provocando entre os países uma adequação à sua lógica e criação de condições para o seu desenvolvimento.
São diversos os exemplos a serem citados sobre esse argumento. Mercado financeiro mundial, disseminação de grandes corporações, preocupação com monopólios, etc. (José Eduardo Faria afirma que apenas as operações financeiras chamadas swaps e seus derivativos negociados durante o ano de 2006 foram 6 vezes maiores que o produto mundial bruto).
Considerando essa situação de internacionalização da economia, os Estados Nacionais perdem grande parte de seu poder de controle. A política econômica parece não mais depender dos valores democráticos, mas da lógica do capital financeiro. Não há mais um vértice de onde decisões são tomadas e implementadas segundo uma lógica de poder. Cada vez mais esvai-se a noção de território nacional e, portanto, de uma soberania nos moldes do século XX. Os organismos multilaterais se multiplicam, não somente de maneira a criar mercados regionais, mas a discutir estratégias conjuntas para superar problemas que assolam a vida contemporânea.
Nesse particular, além dos blocos econômicos e militares, verificam-se órgãos de cúpula em esforços conjuntos para tentar estabelecer políticas econômicas efetivas e regular minimamente o mercado (A crise de 2008 produziu reuniões e acordos unanimemente aprovados entre as 20 maiores economias nacionais do mundo, como um esforço para o salvamento mútuo).
A sociedade civil parece também reorganizar sua estrutura a partir dessas modificações: disseminam-se organizações de atuação social, diferenciam-se cada vez mais as estruturas sociais, modificam-se comportamentos entre os indivíduos e entre esses e as instituições.
O desenvolvimento de ONGs, atenção a especialização nos trabalhos desenvolvidos, alteração dos perfis dos trabalhadores e das demandas de trabalho, flexibilização das relações de trabalho, etc (Dados do US Bureau of Labor Statistics indicam que os postos de trabalho da agricultura e industria decaem permanentemente desde o meio do século XX enquanto a produção desses setores se mantêm em alta; cresce o setor de serviços principalmente especializados).
Verifica-se um padrão nas informações listadas: o mundo está verdadeiramente organizado de maneira interdependente, cada vez mais prescindindo de um vértice central e passando a atuar em rede (flexibilização do gerenciamento, descentralização decisória).
Apesar da redução do nível de miseráveis, impossível deixar de lembrar da acentuação de desigualdades causadas por essa estrutura que continua a deixar de abranger parte majoritária do mundo.

3. Essa estrutura revela grande e complexo impacto na vida dos indivíduos. Complexo no sentido de que detém várias causas e determinam variadas conseqüências para a vida contemporânea.
Seria possível destacar diversas características dos indivíduos na vida moderna. É bem comum sua remissão à condição de consumidor ante o movimento econômico característico. É possível associá-los ao convívio pela internet e as possibilidades de conexão e trocas de idéias com as mais diversas culturas. Ou ainda destacar a impessoalidade das relações humanas ante as mudanças verificadas. Tudo isso é verdadeiro.
Para os fins dessa exposição, destaca-se, entretanto, a identidade do indivíduo no contexto contemporâneo. Haveria, segundo Castells, uma relação de oposição bipolar entre “rede” e “ser”: enquanto os objetivos são discutidos e compartilhados na “rede”, o “ser” resiste ao processo, buscando desenvolver sua identidade que lhe serve de fonte de significado ante a desestruturação das instituições. Isso não significa necessariamente e incapacidade do “ser” em se relacionar com outras identidades, ou abarcar toda sociedade sob essa identidade. Mas as relações sociais são definidas com base nos atributos culturais que especificam a identidade. Assim, apesar da identidade se desenvolver diretamente na rede, não é condicionada por ela.
Ao relativizar o conceito de tempo/espaço e por isso mesmo maximizar o contraste entre padrões fragmentados, o indivíduo procura sua autonomia de cognição/interpretação em modelos de identidades primárias tais como religião, etnia, nacionalidade, etc. Sente-se a necessidade de identidades que consigam atribuir um significado para as experiências, pois num mundo onde todas as orientações convivem é muito difícil que compartilhem as mesmas perspectivas, dadas as perspectivas distintas sobre os objetos analisados.
Os grupos representam perspectivas múltiplas sobre os mais diversos assuntos. Eles substituem os espaços locais onde esses consensos eram compartilhados e diversificam as opiniões, os pensamentos.
A Internet possibilita uma interação real entre os indivíduos que nela se encontram e a possibilidade de o sujeito se fundir em múltiplos “self”. As mudanças do mundo na pós-modernidade provocaram a mistura, em todos os níveis, do indivíduo com o contexto social, gerando implicações na formação de identidades novas ou tradicionais, constituição de concepções do próprio sujeito.
Para construir uma identidade, o sujeito precisa formular um significado do mundo, para finalmente se ver como alguém e ocupar um lugar nele e interagir com esse ambiente diversificado, múltiplo e instável, o novo sujeito social precisa desenvolver modos de inserção nesse espaço.
É imprescindível notar que os indivíduos buscam através dessa identidade, que vai do nacionalismo ao fundamentalismo religioso, das preferências estéticas às atividades esportivas compartilhadas, padrões de conhecimento e avaliação que condicionam sua perspectiva.
A busca pelo lugar próprio no mundo acaba se dando através da aceitação comunitária por serem compartilhados os mesmos valores, na esperança de significado e espiritualidade. A identidade não se dá necessariamente no seio de um único grupo, sendo comum ao indivíduo da sociedade contemporânea expandir sua personalidade em vários grupos.
Assim a sociedade produz situações paradoxais: apesar de o mundo estar se integrando progressivamente, as culturas e indivíduos não parecem seguir o mesmo caminho mantendo-se e proliferando-se a fragmentação das identidades.
Ao contrário de que se poderia imaginar, a rede proporciona não uma padronização universal, mas reúne os fragmentos, as perspectivas universais que se entrecruzam e se condicionam reciprocamente.
O mundo contemporâneo reúne tribos diferentes em tempo/espaço reduzido, resultando numa tensão entre o contato e o entendimento, entre globalização e identidade, entre “rede” e “ser”. Todos lutam por sua inclusão e respeito na rede apesar de suas diferenças.
Como resultado, esse processo de formação da identidade no seio de comunidades cria um isolamento. Muito dificilmente indivíduos compartilham opiniões em grande número o que provoca o estranhamento do outro.
A relação conflituosa entre esses dois pólos gera um paradoxo: é necessário estar na rede ainda que esse seja um espaço onde sua perspectiva deva ser constantemente afirmada e testada. A mesma rede que possibilita o convívio e talvez por isso mesmo potencialize o dissenso.

Referências:

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução Roneide Venâncio Majer; atualização para a 6ª. Edição: Jussara Simões – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999.

FARIA, José Eduardo. Sociologia jurídica: direito e conjuntura. São Paulo: Saraiva, 2008 (série GV-law).

LAFER, Celso. Brasil: dilemas e desafios da política externa. In: Revista de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, n. 38, v. 14, jan./abr 2000, p. 260-267.

UNESCO. Hacia las sociedades del conocimiento – informe mundial de la UNESCO. Relatório 2005. Disponível em: http://www.unesco.org/publications (Acesso em 11/11/2008).

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Novo Posicionamento do STF sobre o Direito de Recorrer em Liberdade

Há alguns anos, quando fazia especialização na Universidade da Amazônia, escrevi um trabalho em co-autoria com meu brilhante amigo Leandro N. Rodrigues sobre um tema que me causava perplexidade. Tratava-se da negativa que se conferia aos réus condenados em primeira instância o direito de recorrer em liberdade, o qual em princípio estaria garantido pela Constituição ao inciso LVII do art. 5º.

A perplexidade ficava por conta do entendimento pacificado, inclusive dos tribunais superiores, de que a garantia devia ser interpretada de modo a ser compatibilizada com os dispositivos do CPP anterior à Constituição, artigos 393 e 594. As decisões mostravam-se reiteradas, mas lacônicas quanto ao porquê de se interpretar a garantia constitucional de modo tão restritivo. Chamou atenção também o fato de ser uma questão que sempre gerou debates entre os próprios integrantes do Judiciário.

Na época, nossa posição foi optar por fazer um levantamento sobre a questão e partir do pressuposto então consagrado na jurisprudência relacionado à presunção da inocência. A garantia entendida de maneira restrita poderia ao menos abrir espaço a uma situação mais coerente com o restante da legislação processual penal. Aderimos, então, à tese da execução provisória da pena em lugar de uma prisão de natureza “cautelar”, causando verdadeiros absurdos na interpretação dos direitos fundamentais do réu como a impossibilidade de exercer os direitos reconhecidos ao livramento condicional e progressão de regime. Tais absurdos seriam evitados ao se entender a prisão decorrente de sentença condenatória como uma espécie de execução provisória da pena.

Esse posicionamento, para nós, sempre foi um second best, porque já nos parecia clara a violação ao direito fundamental, menos pela redação do dispositivo constitucional, mas pela compreensão sistemática de toda legislação e das teorias que dela se poderia compreender. Isso pode ser observado na conclusão do escrito quando deixamos explícita tal noção.

A solução que propusemos foi analisada e não foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Observe-se o acórdão seguinte:

EMENTA: HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
1. O art. 637 do CPP estabelece que "[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença". A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
2. Daí a conclusão de que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP.
3. Disso resulta que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar.
4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão.
5. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários, e subseqüentes agravos e embargos, além do que "ninguém mais será preso". Eis o que poderia ser apontado como incitação à "jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço.
6. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade. É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual Ordem concedida.(HC 91333, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 09/10/2007, DJe-165 DIVULG 18-12-2007 PUBLIC 19-12-2007 DJ 19-12-2007 PP-00074 EMENT VOL-02304-02 PP-00258)

Conforme se depreende de nosso texto, concordamos. Só que essa decisão criava uma situação curiosa: o princípio da presunção da inocência servia para não autorizar a execução penal, a qual garantia direitos ao réu; por outro lado, não servia para impedir a prisão decorrente de sentença condenatória sujeita a recurso, a qual significava na prática menos direitos ao réu.

O STF reviu a jurisprudência há muitos anos consolidada. Acompanhe-se o caso na notícia a seguir retirada do sítio do tribunal na internet. Para os que se interessarem também pelos outros posicionamentos referidos acima, convido-os a conferir nosso texto: Da natureza jurídica da prisão decorrente da sentença penal condenatória conforme interpretação jurisprudencial do princípio da presunção de inocência: Apologia da execução provisória da pena.

É cedo para comemorar. Apesar da alteração, o Plenário da Corte ficou muito dividido. Para piorar não há uma fundamentação mais extensa e qualificada que proteja a decisão de rompantes ocasionais, causados pelo apelo de uma situação dramática que nos é comum. É preciso que nos mantenhamos atentos a proteção dos direitos fundamentais.

Supremo garante a condenado o direito de recorrer em liberdade
Publicado no sítio do Supremo Tribunal Federal, em 05 de fevereiro de 2009
Por sete votos a quatro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu, nesta quinta-feira (5), o Habeas Corpus (HC) 84078 para permitir a Omar Coelho Vítor – condenado pelo Tribunal do Júri da Comarca de Passos (MG) à pena de sete anos e seis meses de reclusão, em regime inicialmente fechado –que recorra dessa condenação, aos tribunais superiores, em liberdade. Ele foi julgado por tentativa de homicídio duplamente qualificado (artigos 121, parágrafo 2º, inciso IV, e 14, inciso II, do Código Penal).
Antes da subida do Recurso Especial (REsp) ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Ministério Público de Minas Gerais pediu ao Tribunal de Justiça daquele estado a decretação da prisão, uma vez que o réu, conhecido produtor de leite da região, estava colocando à venda, em leilão, seu rebanho holandês e suas máquinas agrícolas e equipamentos de leite.
Esse fato, segundo o MP mineiro, estaria a demonstrar seu intuito de se furtar à aplicação da lei penal. O 1º Vice-Presidente do TJ-MG acolheu as ponderações do MP estadual e decretou a prisão.
Como o REsp ainda não foi julgado e Vitor corre o risco de a ordem de prisão ser cumprida, ele impetrou habeas no STF, pedindo a suspensão da execução da pena. Também pediu que não se aplicasse a norma (artigo 637 do Código de Processo Penal) segundo a qual o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo.

O caso
O processo foi trazido de volta a julgamento pelo ministro Menezes Direito, que pediu vista do processo em abril do ano passado, quando o relator, ministro Eros Grau, já havia votado pela concessão do HC.
O processo deu entrada em março de 2004, tendo naquele mês o então relator, ministro Nelson Jobim (aposentado), negado e posteriormente concedido liminar. Ele mudou de posição diante da explicação de Omar Coelho de que vendera seu rebanho de leite para mudar de ramo de negócios.
O caso começou a ser julgado na Segunda Turma do STF, que decidiu afetá-lo ao Plenário, que iniciou seu julgamento em abril do ano passado, quando Menezes Direito pediu vista.

Debates
O processo provocou prolongados debates, tendo de um lado, além de Eros Grau, os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio, que votaram pela concessão do HC. Foram vencidos os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, que o negaram.
Prevaleceu a tese de que a prisão de Omar Coelho Vitor, antes da sentença condenatória transitada em julgado, contrariaria o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal (CF), segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Já os ministros Menezes Direito e Joaquim Barbosa sustentaram que o esgotamento de matéria penal de fato se dá nas instâncias ordinárias e que os recursos encaminhados ao STJ e STF não têm "efeito suspensivo" (quando se suspende a sentença condenatória, no caso). Menezes Direito e Ellen Gracie sustentaram, também, que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, de que o Brasil é signatário) não assegura direito irrestrito de recorrer em liberdade, muito menos até a 4ª instância, como ocorre no Brasil.
Afirmaram, ainda, que país nenhum possui tantas vias recursais quanto o Brasil. Direito citou os Estados Unidos, o Canadá e a França como exemplos de países que admitem o início imediato do cumprimento de sentença condenatória após o segundo grau. Observaram, ademais, que a execução provisória de sentença condenatória serve também para proteger o próprio réu e sua família.
Esta, entretanto, conforme o ministro Celso de Mello, “não é juridicamente viável em nosso sistema normativo”. Ele admitiu, no entanto, que a prisão cautelar processual é admissível, desde que fundamentada com base nos quatro pressupostos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal – garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal”.

Críticas ao sistema penal
Durante os debates, o ministro Joaquim Barbosa questionou a eficácia do sistema penal brasileiro. “Se formos aguardar o julgamento de Recursos Especiais (REsp) e Recursos Extraordinários (REs), o processo jamais chegará ao fim”, afirmou.
“No processo penal, o réu dispõe de recursos de impugnação que não existem no processo civil”, observou ainda Joaquim Barbosa. Segundo ele, em nenhum país há a “generosidade de HCs” existente no Brasil.
Ele disse, a propósito, que há réus confessos que nunca permanecem presos. E citou um exemplo: “Sou relator de um rumoroso processo de São Paulo”, relatou. “Só de um dos réus foram julgados 62 recursos no STF, dezenas de minha relatoria, outros da relatoria do ministro Eros Grau e do ministro Carlos Britto”.
“O leque de opções de defesa que o ordenamento jurídico brasileiro oferece ao réu é imenso, inigualável”, afirmou. “Não existe em nenhum país no mundo que ofereça tamanha proteção. Portanto, se resolvermos politicamente – porque esta é uma decisão política que cabe à Corte Suprema decidir – que o réu só deve cumprir a pena esgotados todos os recursos, ou seja, até o Recurso Extraordinário julgado por esta Corte, nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão”.

"Mundo de horrores"
Ao proferir seu voto – o último do julgamento –, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o voto majoritário do relator, ministro Eros Grau. Apresentando dados, ele admitiu que a Justiça brasileira é ineficiente, mas disse que o país tem um elevado número de presos – 440 mil.
“Eu tenho dados decorrentes da atividade no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que são impressionantes. Apesar dessa inefetividade (da Justiça), o Brasil tem um índice bastante alto de presos. São 440 mil presos, dados de 2008, dos quais 189 mil são presos provisórios, muitos deles há mais de dois, mais de três anos, como se tem encontrado nesses mutirões do CNJ. E se nós formos olhar por estado, a situação é ainda mais grave. Nós vamos encontrar em alguns estados 80% dos presos nesse estágio provisório [prisão provisória]”.
“Nos mutirões realizado pelo CNJ encontraram-se presos no estado Piauí que estavam há mais de três anos presos provisoriamente sem denúncia apresentada”, relatou ainda o ministro. “No estado do Piauí há até uma singularidade. A Secretaria de Segurança do Estado concebeu um tal inquérito de capa preta, que significa que a Polícia diz para a Justiça que não deve soltar aquela pessoa. É um mundo de horrores a Justiça criminal brasileira. Muitas vezes com a conivência da Justiça e do Ministério Público”.
“Dos habeas corpus conhecidos no Tribunal, nós tivemos a concessão de 355”, informou o presidente do STF. “Isto significa mais de um terço dos habeas corpus. Depois de termos passado, portanto, por todas as instâncias – saindo do juiz de primeiro grau, passando pelos TRFs ou pelos Tribunais de Justiça, passando pelo STJ – nós temos esse índice de concessão de habeas corpus. Entre REs e AIs [agravos de instrumento] tratando de tema criminal, há 1.749, dos quais 300 interpostos pelo MP. Portanto, não é um número tão expressivo”.
“De modo que eu tenho a impressão de que há meios e modos de lidar com este tema a partir da própria visão ampla da prisão preventiva para que, naqueles casos mais graves, e o próprio legislador aqui pode atuar, e eu acho que há propostas nesse sentido de redimensionar o sentido da prisão preventiva, inclusive para torná-la mais precisa, porque, obviamente, dá para ver que há um abuso da prisão preventiva”, assinalou Gilmar Mendes. “O ministro Celso de Mello tem liderado na Turma lições quanto aos crimes de bagatela. Em geral se encontram pessoas presas no Brasil porque furtaram uma escova de dentes, um chinelo”.
“Portanto – concluiu –, não se cumprem minimamente aquela comunicação ao juiz para que ela atenda ou observe os pressupostos da prisão preventiva. A prisão em flagrante só deve ser mantida se de fato estiverem presentes os pressupostos da prisão preventiva. Do contrário, o juiz está obrigado, por força constitucional, a relaxar [a prisão]. De modo que estou absolutamente certo de que esta é uma decisão histórica e importante do Tribunal.”

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Primórdios da Análise Sociológica do Direito

* No primeiro ano de meu blog gostaria de agradecer aqueles que o visitam e que expressam suas idéias nesse espaço. Sinto-me na obrigação de prestar contas sobre meus estudos e de promover o conhecimento de temas que reputo interessantes, mas que nem sempre dispomos do tempo necessário para enfrentá-los. Em comemoração desse primeiro ano, apresento um novo layout e novidades para aqueles que quiserem participar da construção do blog: há uma enquete para sondar os assuntos de maior interesse dos leitores (restritas às minhas áreas de interesse, por óbvio), bem como ferramentas de feed que possibilitam que os interessados receberem em tempo real as atualizações. Grande abraço! Daniel Coutinho da Silveira *

1. No período que compreendeu o fim do século XIX e o inicio do século XX, o pensamento jurídico passava por um momento de indefinição epistemológica que impedia seu assentamento em bases claras. A consideração do direito não conseguia superar os questionamentos sobre sua gênese e renovação: seria o direito originário das práticas sociais e apenas confirmado ou reconhecido pelo Estado nacional? Ou o direito seria integralmente identificado com a norma estatal abstrata e oriunda de um processo legislativo determinado, que lhe daria validade apesar de práticas sociais em contrário?
Aparte da discussão acadêmica sobre a natureza do direito, sua trajetória restou vinculada aos desígnios da história institucional do Estado, que centralizou a produção de leis e foi progressivamente reduzindo espaços normativos eventualmente reivindicados por outros setores da sociedade.
Assim a história pendeu para uma abordagem especificamente formal do direito, identificando-o com a norma estatal. A popularidade do direito formal se deve a fortaleza de suas construções teóricas além de acompanhar uma tendência de importância dos Estados nacionais, na centralização da ordem e regulamentação da vida pública na modernidade. No período pós-revoluções liberais, a experiência dos Estados comprova o papel fundamental que desenvolveu na cultura ocidental como agente garantidor das liberdades individuais e monopolizador do uso da coerção legítima, desenvolvendo aparato jurídico correspondente.

2. No final do século XIX os Estados atingiriam importância capital para a sociedade e assim influenciariam decisivamente no curso do fenômeno jurídico. Convergiam para as instituições estatais as esperanças de organização necessárias para condução das tensões sociais existentes.
De um modo geral, no frisson das expectativas do projeto iluminista, as sociedades mais desenvolvidas da Europa comungavam ideais liberais na seara econômica e pregavam um Estado mínimo em atribuições, mas importante para a criação de condições para o desenvolvimento do capitalismo. O impulso econômico do século XIX teve participação decisiva dos Estados na condução do processo de implantação da modernização do setor produtivo.
A importância dos Estados é notada principalmente a quando da primeira grande crise do capitalismo que se dá com a saturação do mercado europeu ante os excedentes produtivos gerados pela segunda revolução industrial, que acarretou diversos e graves problemas sociais que ameaçavam a ordem vigente.
A solução para a crise de então passou diretamente pela ação estatal, revitalizando o colonialismo de maneira a responder a pressões econômicas, políticas e sociais. Os países centrais buscavam nas novas colônias fontes de matéria-prima (carvão, ferro, petróleo), expansão dos mercados consumidores para seus excedentes industriais, bem como novos investimentos para os capitais disponíveis.
Nesse contexto, por óbvio, o Estado Nacional emergia como peça fundamental no cenário mundial, tomando a frente da condução das economias.[1]
Os problemas sociais gerados pelas mazelas econômicas repercutiam diretamente na esfera social, valorizando o Estado também nessa perspectiva. Em termos de política interna, o Estado foi determinante para a contenção de movimentos operários que explodiam no agravar da crise, de maneira a administrar o status quo.
Além dessa função capital que adquiria na ordem mundial daquele momento, a agenda política registrava jogo de poder tão importante quanto os influxos econômicos. Vigia uma ordem mundial baseada no equilíbrio de poder retomada a partir da falência do regime firmado pelo Tratado de Viena. A agitação política impunha graves dificuldades ao referido acordo, que consubstanciava os regimes dinásticos na Europa baseado na legitimidade dos governos monárquicos.
A quebra da ordem política culminou com novas tensões entre os países e ameaçava o cenário geográfico europeu uma vez mais. Tornou-se comum a formação de alianças secretas entre os Estados para proteção contra inimigos comuns, as quais se revelavam tão voláteis quanto as possíveis novas ameaças. As ameaças entre Estados eram comuns e tornavam o regresso ao período de guerras ante o menor sinal de fragilidade de qualquer dos componentes do jogo de poder.
Cada Estado europeu tinha de se preocupar com o aumento de seus contingentes militares de maneira a fortalecer a própria posição entre as demais potências. Isso também era incentivo para se lançarem às colônias, pois essas significavam meios de obtenção de recursos e pessoal para seus exércitos. As colônias refletiam a difusão do poder de cada Estado e lhes propiciavam importante peso no quadro político geral.[2]
Também por esse prisma o Estado ocupava papel imprescindível nas sociedades da época, caracterizando-se como fundamento primordial da organização humana para seu desenrolar futuro. Seria impensável conceber o mundo sem esse poder central.
Evidentemente, a análise da sociedade oitocentista deve considerar muitos outros fatores na compreensão da importância do papel que Estado desempenhava àquele momento, indicando sua primazia como instituição social. [3]
De todo modo, nesse período é que o direito moderno assume suas feições como instrumento formal (cuja racionalidade prescinde de conteúdo substantivo dado o pluralismo moral das sociedades humanas), identificado a partir de quatro características básicas: generalidade, abstração, positividade e coercibilidade.

3. Esse estado de coisas ensejava leituras distintas da parte acadêmica. De um lado, a identificação do direito com a norma Estatal ganhou força e popularidade entre as universidades e na prática jurídica, ante sua compatibilidade com os influxos políticos. De outro, entretanto, havia quem questionasse tal forma de enxergar o direito, entendendo-a demasiadamente limitada, insuficientemente legítima e descritivamente imprecisa.
Certamente não foram apenas as circunstancias políticas que proporcionaram os sucessos de teses formalistas do positivismo jurídico. A robustez dos argumentos suscitados por seus defensores foi determinante para seu entendimento como modelo científico amplamente coerente e capaz de proporcionar respeitável perspectiva do fenômeno jurídico independentemente do contexto histórico em que se localiza.
Talvez, essa doutrina filosófica tenha sido a que melhor se adequou àquela realidade ainda que seus pressupostos não sejam seguidos na integra pelos ordenamentos jurídicos e práticas judiciárias. No fim das contas, tal arcabouço doutrinário foi apropriado pelos Estados nacionais para justificar o exercício de sua dominação e da validade do seu comando.
As críticas a compreensão meramente formal do direito sempre existiram. No entanto, àquele momento, se propunham novos recursos de crítica sob matriz teórica específica. O avanço das ciências no século XIX possibilitou a sistematização das ciências sociais, da sociologia, e ainda de forma incipiente tentava opor crítica à mencionada maneira de compreensão do direito.
A principal chave de proposições desse movimento se reportava a constatação do pluralismo jurídico. Buscava-se criticar a uniformidade e a unicidade do ordenamento jurídico estatal, bem como sua legitimidade.
Diversos teóricos constatavam nos movimentos sociais existentes na época, especialmente os sindicatos nacionais e uniões sindicais internacionais, mas também nas associações de empresas na formação de trustes, holdings e cartéis, forças que se mostravam irresistíveis, capazes de se emancipar do controle então exercido pelo Estado.
As desigualdades punham em xeque o modelo do individualismo liberal-clássico, o que teve como repercussão um questionamento radical de toda estrutura social, econômica, política e também jurídica da questão. Se função primordial e centralizadora exercida pelo Estado nas sociedades encontrava-se questionada, conseqüentemente a condição de exclusivo produtor, detentor e aplicador do direito também. Diversos foram os teóricos que tentaram vislumbrar a partir dessa observação da sociedade e das antigas críticas à concepção de direito como norma positivada, uma crítica à sua estrutura assumida modernamente.

4. É nesse contexto que se pode situar uma doutrina como a do austríaco Eugene Ehrlich, um dos primeiros a abordar o direito a partir de uma linha sociológica.
Esse autor estabeleceu uma célebre diferenciação entre o que se entende por direito vivo (conjunto de regras referentes às relações interindividuais e internas aos agrupamentos sociais) e normas de decisão (normas que devem ser aplicadas pelos tribunais nos conflitos). Para Ehrlich, o direito deve ser analisado muito além das promulgações dos legisladores, ou do aplicado pelo tribunal. Seria preciso examinar se o direito está de acordo com aquilo que é vivido pela sociedade, a qual as normas se dirigem. O direito vivo se sobreporia às normas de decisão, porque obtêm diretamente sua legitimidade dos agrupamentos sociais.
O direito seria, assim, resultado de um processo social. Não seria um instrumento de controle, mas uma prática, uma vivência dos grupos que agregavam indivíduos e seriam fornos de produção de normas distinguíveis das leis morais pelo grau do sentimento de revolta que sua infração causaria numa espécie de consciente coletivo.[4]
Talvez se explique pensamento desse autor, pela prática de sua vida. Vivia numa área de múltiplas etnias no extremo oriente do território do Império Austro-Húngaro: pluralismo normativo, contrário a intrusão do direito estatal, vindo de Viena. Assim se preocupava mais com a subsistência de ordenamentos espontâneos do que com a adaptabilidade do direito estatal à novas condições sociais.[5]
A pergunta que Ehrlich tenta responder é qual a relação entre o direito formalmente válido e a vida real de populações tão diversas e fragmentadas? Para ele, só o exame da pluralidade das experiências jurídicas concretas oferece soluções satisfatórias. Ele separa direito de Estado, abrindo espaço para elaboração de juízes, juristas e principalmente da sociedade.

5. A lembrança desse teórico dentre tantos outros que poderiam ser utilizados para falar do nascimento da sociologia jurídica, dentre os quais se poderia destacar v.g. Pound, Hariou, Duguit ou Gurvitch, é a polêmica deflagrada com Kelsen, na qual se enfrentavam diretamente formalismo e pluralismo.
Quanto a teoria do direito, Kelsen acusa Ehrlich de diversas impropriedades: a) perder de vista a dimensão normativa do direito; b) entender o direito vivo como simples resultado das mutáveis exigências da produção e do consumo; c) procurar na regularidade social (e não no ilícito e na sanção) a essência do direito; d) representar um retorno a metafísica jusnaturalistas; e) psicologizar a ciência jurídica ao vincular sua legitimidade à consciência de grupo. Além disso, entendeu que a tese de Ehrlich foi incapaz de estabelecer critério de juridicidade da regras: nem todas as regras são direito, havendo também regras meramente sociais, sendo desprezadas pelo ordenamento.[6]
Ehrlich não conseguiu dar respostas a altura das objeções de Kelsen. Na época, o debate foi amplamente favorável ao formalista. As objeções apresentadas são extremamente robustas e até hoje são opostas aos defensores de qualquer variável do pluralismo jurídico.
A vencedora tese de Kelsen é o referencial do direito por todo o século XX. Os eventos que se sucederam reservou papel ainda mais central para o Estado, levando-o a atuar diretamente no campo social após sérias crises econômicas, duas Guerras Mundiais e divisão do mundo entre duas superpotências, para citar alguns eventos.Entretanto, o desenrolar da história apresentaria sérias dificuldades ao modelo formalista e as discussões sobre as relações entre direito e sociedade ganha novo fôlego sob as mais díspares perspectivas, conforme se tentou demonstrar nos trabalhos de Bobbio e Teubner nas duas últimas postagens.

Notas:
[1] HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 2007.
[2] KISSINGER, Henry. Diplomacia. Tradução Saul F. Gefter, Ann Mary Fighiera Perpétuo e Heitor Aquino Ferreira. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1999.
[3] WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura, 1981, Cap. VII
[4] BILLIER, Jean-Cassien; MARYOLI, Agalé. História da filosofia do direito. São Paulo: Manole, 2005, p. 277-346.
[5]TEUBNER, Gunther. Global Bukowina: legal pluralism in the world society in Gunther Teubner (org), Global law without a state, Adlershot, Darthmouth, 1996. Disponível em http://ssrn.com/abstract=896478; Acesso em 11/2008.
[6] Segundo esse autor, tais críticas dos formalistas fazem parte de uma dicotomia radical entre os que vêem o direito como sistema exclusivamente fechado ou totalmente aberto. O correto seria propor um nível adequado de abertura que o compreenda como fenômeno social. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Teoria do direito e globalização econômica in O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, 141-160.