quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Primórdios da Análise Sociológica do Direito

* No primeiro ano de meu blog gostaria de agradecer aqueles que o visitam e que expressam suas idéias nesse espaço. Sinto-me na obrigação de prestar contas sobre meus estudos e de promover o conhecimento de temas que reputo interessantes, mas que nem sempre dispomos do tempo necessário para enfrentá-los. Em comemoração desse primeiro ano, apresento um novo layout e novidades para aqueles que quiserem participar da construção do blog: há uma enquete para sondar os assuntos de maior interesse dos leitores (restritas às minhas áreas de interesse, por óbvio), bem como ferramentas de feed que possibilitam que os interessados receberem em tempo real as atualizações. Grande abraço! Daniel Coutinho da Silveira *

1. No período que compreendeu o fim do século XIX e o inicio do século XX, o pensamento jurídico passava por um momento de indefinição epistemológica que impedia seu assentamento em bases claras. A consideração do direito não conseguia superar os questionamentos sobre sua gênese e renovação: seria o direito originário das práticas sociais e apenas confirmado ou reconhecido pelo Estado nacional? Ou o direito seria integralmente identificado com a norma estatal abstrata e oriunda de um processo legislativo determinado, que lhe daria validade apesar de práticas sociais em contrário?
Aparte da discussão acadêmica sobre a natureza do direito, sua trajetória restou vinculada aos desígnios da história institucional do Estado, que centralizou a produção de leis e foi progressivamente reduzindo espaços normativos eventualmente reivindicados por outros setores da sociedade.
Assim a história pendeu para uma abordagem especificamente formal do direito, identificando-o com a norma estatal. A popularidade do direito formal se deve a fortaleza de suas construções teóricas além de acompanhar uma tendência de importância dos Estados nacionais, na centralização da ordem e regulamentação da vida pública na modernidade. No período pós-revoluções liberais, a experiência dos Estados comprova o papel fundamental que desenvolveu na cultura ocidental como agente garantidor das liberdades individuais e monopolizador do uso da coerção legítima, desenvolvendo aparato jurídico correspondente.

2. No final do século XIX os Estados atingiriam importância capital para a sociedade e assim influenciariam decisivamente no curso do fenômeno jurídico. Convergiam para as instituições estatais as esperanças de organização necessárias para condução das tensões sociais existentes.
De um modo geral, no frisson das expectativas do projeto iluminista, as sociedades mais desenvolvidas da Europa comungavam ideais liberais na seara econômica e pregavam um Estado mínimo em atribuições, mas importante para a criação de condições para o desenvolvimento do capitalismo. O impulso econômico do século XIX teve participação decisiva dos Estados na condução do processo de implantação da modernização do setor produtivo.
A importância dos Estados é notada principalmente a quando da primeira grande crise do capitalismo que se dá com a saturação do mercado europeu ante os excedentes produtivos gerados pela segunda revolução industrial, que acarretou diversos e graves problemas sociais que ameaçavam a ordem vigente.
A solução para a crise de então passou diretamente pela ação estatal, revitalizando o colonialismo de maneira a responder a pressões econômicas, políticas e sociais. Os países centrais buscavam nas novas colônias fontes de matéria-prima (carvão, ferro, petróleo), expansão dos mercados consumidores para seus excedentes industriais, bem como novos investimentos para os capitais disponíveis.
Nesse contexto, por óbvio, o Estado Nacional emergia como peça fundamental no cenário mundial, tomando a frente da condução das economias.[1]
Os problemas sociais gerados pelas mazelas econômicas repercutiam diretamente na esfera social, valorizando o Estado também nessa perspectiva. Em termos de política interna, o Estado foi determinante para a contenção de movimentos operários que explodiam no agravar da crise, de maneira a administrar o status quo.
Além dessa função capital que adquiria na ordem mundial daquele momento, a agenda política registrava jogo de poder tão importante quanto os influxos econômicos. Vigia uma ordem mundial baseada no equilíbrio de poder retomada a partir da falência do regime firmado pelo Tratado de Viena. A agitação política impunha graves dificuldades ao referido acordo, que consubstanciava os regimes dinásticos na Europa baseado na legitimidade dos governos monárquicos.
A quebra da ordem política culminou com novas tensões entre os países e ameaçava o cenário geográfico europeu uma vez mais. Tornou-se comum a formação de alianças secretas entre os Estados para proteção contra inimigos comuns, as quais se revelavam tão voláteis quanto as possíveis novas ameaças. As ameaças entre Estados eram comuns e tornavam o regresso ao período de guerras ante o menor sinal de fragilidade de qualquer dos componentes do jogo de poder.
Cada Estado europeu tinha de se preocupar com o aumento de seus contingentes militares de maneira a fortalecer a própria posição entre as demais potências. Isso também era incentivo para se lançarem às colônias, pois essas significavam meios de obtenção de recursos e pessoal para seus exércitos. As colônias refletiam a difusão do poder de cada Estado e lhes propiciavam importante peso no quadro político geral.[2]
Também por esse prisma o Estado ocupava papel imprescindível nas sociedades da época, caracterizando-se como fundamento primordial da organização humana para seu desenrolar futuro. Seria impensável conceber o mundo sem esse poder central.
Evidentemente, a análise da sociedade oitocentista deve considerar muitos outros fatores na compreensão da importância do papel que Estado desempenhava àquele momento, indicando sua primazia como instituição social. [3]
De todo modo, nesse período é que o direito moderno assume suas feições como instrumento formal (cuja racionalidade prescinde de conteúdo substantivo dado o pluralismo moral das sociedades humanas), identificado a partir de quatro características básicas: generalidade, abstração, positividade e coercibilidade.

3. Esse estado de coisas ensejava leituras distintas da parte acadêmica. De um lado, a identificação do direito com a norma Estatal ganhou força e popularidade entre as universidades e na prática jurídica, ante sua compatibilidade com os influxos políticos. De outro, entretanto, havia quem questionasse tal forma de enxergar o direito, entendendo-a demasiadamente limitada, insuficientemente legítima e descritivamente imprecisa.
Certamente não foram apenas as circunstancias políticas que proporcionaram os sucessos de teses formalistas do positivismo jurídico. A robustez dos argumentos suscitados por seus defensores foi determinante para seu entendimento como modelo científico amplamente coerente e capaz de proporcionar respeitável perspectiva do fenômeno jurídico independentemente do contexto histórico em que se localiza.
Talvez, essa doutrina filosófica tenha sido a que melhor se adequou àquela realidade ainda que seus pressupostos não sejam seguidos na integra pelos ordenamentos jurídicos e práticas judiciárias. No fim das contas, tal arcabouço doutrinário foi apropriado pelos Estados nacionais para justificar o exercício de sua dominação e da validade do seu comando.
As críticas a compreensão meramente formal do direito sempre existiram. No entanto, àquele momento, se propunham novos recursos de crítica sob matriz teórica específica. O avanço das ciências no século XIX possibilitou a sistematização das ciências sociais, da sociologia, e ainda de forma incipiente tentava opor crítica à mencionada maneira de compreensão do direito.
A principal chave de proposições desse movimento se reportava a constatação do pluralismo jurídico. Buscava-se criticar a uniformidade e a unicidade do ordenamento jurídico estatal, bem como sua legitimidade.
Diversos teóricos constatavam nos movimentos sociais existentes na época, especialmente os sindicatos nacionais e uniões sindicais internacionais, mas também nas associações de empresas na formação de trustes, holdings e cartéis, forças que se mostravam irresistíveis, capazes de se emancipar do controle então exercido pelo Estado.
As desigualdades punham em xeque o modelo do individualismo liberal-clássico, o que teve como repercussão um questionamento radical de toda estrutura social, econômica, política e também jurídica da questão. Se função primordial e centralizadora exercida pelo Estado nas sociedades encontrava-se questionada, conseqüentemente a condição de exclusivo produtor, detentor e aplicador do direito também. Diversos foram os teóricos que tentaram vislumbrar a partir dessa observação da sociedade e das antigas críticas à concepção de direito como norma positivada, uma crítica à sua estrutura assumida modernamente.

4. É nesse contexto que se pode situar uma doutrina como a do austríaco Eugene Ehrlich, um dos primeiros a abordar o direito a partir de uma linha sociológica.
Esse autor estabeleceu uma célebre diferenciação entre o que se entende por direito vivo (conjunto de regras referentes às relações interindividuais e internas aos agrupamentos sociais) e normas de decisão (normas que devem ser aplicadas pelos tribunais nos conflitos). Para Ehrlich, o direito deve ser analisado muito além das promulgações dos legisladores, ou do aplicado pelo tribunal. Seria preciso examinar se o direito está de acordo com aquilo que é vivido pela sociedade, a qual as normas se dirigem. O direito vivo se sobreporia às normas de decisão, porque obtêm diretamente sua legitimidade dos agrupamentos sociais.
O direito seria, assim, resultado de um processo social. Não seria um instrumento de controle, mas uma prática, uma vivência dos grupos que agregavam indivíduos e seriam fornos de produção de normas distinguíveis das leis morais pelo grau do sentimento de revolta que sua infração causaria numa espécie de consciente coletivo.[4]
Talvez se explique pensamento desse autor, pela prática de sua vida. Vivia numa área de múltiplas etnias no extremo oriente do território do Império Austro-Húngaro: pluralismo normativo, contrário a intrusão do direito estatal, vindo de Viena. Assim se preocupava mais com a subsistência de ordenamentos espontâneos do que com a adaptabilidade do direito estatal à novas condições sociais.[5]
A pergunta que Ehrlich tenta responder é qual a relação entre o direito formalmente válido e a vida real de populações tão diversas e fragmentadas? Para ele, só o exame da pluralidade das experiências jurídicas concretas oferece soluções satisfatórias. Ele separa direito de Estado, abrindo espaço para elaboração de juízes, juristas e principalmente da sociedade.

5. A lembrança desse teórico dentre tantos outros que poderiam ser utilizados para falar do nascimento da sociologia jurídica, dentre os quais se poderia destacar v.g. Pound, Hariou, Duguit ou Gurvitch, é a polêmica deflagrada com Kelsen, na qual se enfrentavam diretamente formalismo e pluralismo.
Quanto a teoria do direito, Kelsen acusa Ehrlich de diversas impropriedades: a) perder de vista a dimensão normativa do direito; b) entender o direito vivo como simples resultado das mutáveis exigências da produção e do consumo; c) procurar na regularidade social (e não no ilícito e na sanção) a essência do direito; d) representar um retorno a metafísica jusnaturalistas; e) psicologizar a ciência jurídica ao vincular sua legitimidade à consciência de grupo. Além disso, entendeu que a tese de Ehrlich foi incapaz de estabelecer critério de juridicidade da regras: nem todas as regras são direito, havendo também regras meramente sociais, sendo desprezadas pelo ordenamento.[6]
Ehrlich não conseguiu dar respostas a altura das objeções de Kelsen. Na época, o debate foi amplamente favorável ao formalista. As objeções apresentadas são extremamente robustas e até hoje são opostas aos defensores de qualquer variável do pluralismo jurídico.
A vencedora tese de Kelsen é o referencial do direito por todo o século XX. Os eventos que se sucederam reservou papel ainda mais central para o Estado, levando-o a atuar diretamente no campo social após sérias crises econômicas, duas Guerras Mundiais e divisão do mundo entre duas superpotências, para citar alguns eventos.Entretanto, o desenrolar da história apresentaria sérias dificuldades ao modelo formalista e as discussões sobre as relações entre direito e sociedade ganha novo fôlego sob as mais díspares perspectivas, conforme se tentou demonstrar nos trabalhos de Bobbio e Teubner nas duas últimas postagens.

Notas:
[1] HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 2007.
[2] KISSINGER, Henry. Diplomacia. Tradução Saul F. Gefter, Ann Mary Fighiera Perpétuo e Heitor Aquino Ferreira. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1999.
[3] WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura, 1981, Cap. VII
[4] BILLIER, Jean-Cassien; MARYOLI, Agalé. História da filosofia do direito. São Paulo: Manole, 2005, p. 277-346.
[5]TEUBNER, Gunther. Global Bukowina: legal pluralism in the world society in Gunther Teubner (org), Global law without a state, Adlershot, Darthmouth, 1996. Disponível em http://ssrn.com/abstract=896478; Acesso em 11/2008.
[6] Segundo esse autor, tais críticas dos formalistas fazem parte de uma dicotomia radical entre os que vêem o direito como sistema exclusivamente fechado ou totalmente aberto. O correto seria propor um nível adequado de abertura que o compreenda como fenômeno social. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Teoria do direito e globalização econômica in O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, 141-160.

2 comentários:

Anônimo disse...

seu blog é de grande ajuda para os estudantes de direito ;D como eu !
obrigada

Anônimo disse...

(Daiane)