Os bens coletivos são caracterizados por sua indivisibilidade (fruição do bem por um agente não impeça a dos demais em qualidade e quantidade equivalentes) e caráter público (não admitem parcelamento para apropriação privada).
A defesa em juízo desses bens coletivos encontra um problema operacional quando relegada ao patrocínio de indivíduos: na maioria das vezes o desequilíbrio entre o proveito individual que proporciona ao autor não é compatível com os custos de propositura. Isso porque os custos envolvem gastos para reunir o maior número de pessoas possível, de obter conhecimento técnico e científico para compreender a situação, divulgação dos problemas levantados, contratação de profissionais capacitados, etc.
Tal incompatibilidade gera o chamado efeito carona (ou free riding), onde os custos para a defesa do bem são limitados a uma pessoa, mas o benefício é difuso na sociedade. Mesmo quem não concorre para tutela dos bens é beneficiado. Essa conseqüência cria ambiente contrário à tutela coletiva, porque haveria um impulso natural para imobilidade dos agentes.
Essa não é uma barreira intransponível, quando consideradas as motivações ideológicas sempre presentes na tutela coletiva. Mas trata-se de uma barreira econômica importante, sempre colocada na balança na hora de se propor medidas de interesse coletivo.
Esse é um sério problema para o sistema americano de ações coletivas, baseado na propositura da ação por indivíduos. Para solucioná-lo utiliza-se um sistema de incentivos a que propõe a ação: as verbas de sucumbência, regularmente altas, são pagas pelo réu em benefício do autor e advogados, de maneira que recebem por prestar serviço ao grupo social. Além disso, tenta-se reduzir os custos da ação para tornar interessante sua propositura.
O sistema legal brasileiro é diferente por usar de mecanismos públicos (entidades estatais e Ministério Público) e privados (associações privadas) para defesa de direitos coletivos.
A prevalência da defesa através de ações judiciais movidas por órgão público no Brasil se deve a avaliação econômica do custo, mais facilmente suportado pelo Estado que pelo particular. Tanto assim é que o número de ações coletivas propostas pelo Ministério Público é infinitamente maior do que aquelas propostas por entidades privadas.
Os mecanismos públicos de defesa dos interesses sociais funcionam como um redutor de custos, amenizando o efeito carona.
Apesar dessa ser uma boa razão para atribuir aos entes públicos legitimidade para propositura ações coletivas, é necessário avaliar quão legítimo é esse mecanismo.
A conta de diferenças de impacto e percepção social sobre o bem coletivo a mera legitimação institucional não protege necessariamente os direitos coletivos.
Dessa forma, ao se optar pela legitimação institucional é imperativo criar meios de controle de atuação, franqueando participação da sociedade nos processos internos de decisão. A legitimidade processual não pode ofuscar a legitimidade política da defesa do bem comum.
Sugestão de Leitura:
SALLES, Carlos Alberto de. Proteção judicial de direitos difusos e coletivos: funções e significados in Processo civil e interesse público: o processo como instrumento de defesa social. Organizador Carlos Alberto de Salles. São Paulo: RT, 2003, p.131-137
7 comentários:
Muito boa reflexão.
O problema é: se os EUA estão encontrando essa "barreira", imagina quantas não encontraríamos com essa mentalidade e cultura do povo brasileiro... Difícil de compor.
=)
beijos
Bruna,
Primeiramente, obrigado por comentar no blog. Saber que há quem leia motiva ainda mais que eu escreva nesse espaço e atinge a finalidade de debater idéias.
Sua intervenção é muito boa: se nos EUA há problemas para que indivíduos proponham ações coletivas por causa dos custos, mais inapropriado ainda seria ao Brasil adotar essa sistemática.
Realmente há lógica no seu raciocínio, mas acredito que haja alternativas a serem consideradas sem sacrificar a legitimidade individual.
A legitimidade individual é importante porque há bens coletivos que atingem muito mais um indivíduo ou determinado grupo de indivíduos que acabam não tendo seus direitos tutelados por ações institucionais, especialmente quando confrontado com outros interesses da comunidade. Isso sem falar da morosidade institucional que impera no Brasil. Essas razões em si já sào suficientes para propositura da ação individualmente.
Melhor do que suprimir a legitimidade individual seria apoiar o autor individual quando esse ingressar com a ação e responsabilizá-lo pelos abusos. Acredito que alguns entendimentos jurisprudenciais já admitam esses mecanismos quando ações civis públicas são propostas por entidades privadas.
Um beijo e comente sempre. O espaço público precisa de pessoas inteligentes e bem intencionadas como você!
Bru!
Também aqui fiquei com dúvida! hahaha...se hay gobierno soy contra? será?
Se entendi bem, você está defendendo maior apoio à legitimidade individual é isso? Porque existir, ela existe...e a isenção de custas é tanto pras entidades estatais quanto privadas (associações). E o que dizer da repressão ao abuso? Já há inúmeras condenações (não sei se são poucas diante da importância das ações coletivas).
Que tipo de incentivos você acha que o particular deve ter? (é uma dúvida).
Beijos,
a menina das dúvidas.
Meu Deus! Essa postagem bateu o recorde de comentários desse blog! Dois comentários! Agradeço a bondade da Bruna e da Carol por isso.
Na verdade, minha idéia nesse texto foi ressaltar que apesar de haver uma legitimidade institucional desenvolvida e apesar dessa ser boa para reduzir o ônus das pessoas em ingressar em juízo, os indivíduos tem sua parte para suscitar questões a serem resolvidas pelo Judiciário.
Mesmo sem negar que a legitimidade institucional é importante, o papel dos indivíduos para estimular o debate público não deve ser ignorado, tanto fiscalizando a atuação institucional quanto propondo por si mesmo as questões.
Sem dúvida o apoio existe. Não somente nos custos, como também na participação junto ao MP quando são convocadas audiências públicas, por exemplo. Mas acho que deve haver um papel mais atuante mesmo para a sociedade civil. Deixar a questão na mão do MP isoladamente nem sempre é salutar. Cria aquele sentimento de paternalismo, tão familiar aos brasileiros...
O problema é que isso não pode ser criado por lei, é um fato cultural a ser trabalhado. Realmente não vejo como a lei pode modificar essa situação. Tornar obrigatória a participação não seria adequado por se perder agilidade, por motivos demagógicos. Talvez a propositura individual e não por associações ajude, associada com a isenção de custos.
Não tenho a resposta, mas que a participação individual é fundamental na criação do espaço público, isso é. Não se pode deixar tudo na mão do Estado e esperar que resolva tudo.
Beijos!
Pessoas,
Conciliando esse comentário com a postagem seguinte, devo esclerecer que o papel do indivíduo é de criação de argumentos, apresentação de provas, apontar as dissidências dentro do grupo, eventualmente até propor ação, mas isso não significa que deva fazê-lo exclusivamente através da participação de cada um. É necessário reconhecer que se pode estar representado sem estar necessariamente presente. Para isso, a representação deve ser fiel e sempre fiscalizada por todos que se encontram no grupo.
Abraços!
Daniel,
Demorou, mas vou fazer meu comentário no teu blog!
Concordo plenamente com tuas conclusões. Também entendo que a concentração da legitimação ativa nas mãos de um único órgão (no caso do Brasil, o MP) é nociva, ainda mais quando se trata de órgão estatal. Vai contra um dos principais objetivos da ação civil coletiva e da própria República, que é fomentar o associativismo em prol de uma sociedade civil mais organizada.
Em relação ao comentário da Carol, sugiro a leitura do anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. Basta procurar no Google: há um projeto da USP, capitaneado pela Ada Pellegrini Grinover, que é o mais famosos deles. Mas há outros anteprojetos do Rio de Janeiro (UFRJ e Estácio de Sá, dirigido pelo Aluisio Castro Mendes) e da Bahia (tocado pelo Antonio Gidi).
No que toca à legitimação ativa para a ação coletiva, o anteprojeto importa a sistemática das Class Actions para o Brasil, determinando o controle da legitimação ativa pelo juiz segundo a controvérsia posta em juízo (controle ope judicis), sem se utilizar de um rol taxativo disposto em lei (controle ope legis). Esse mecanismo possibilita inclusive a legitimação ativa individual, podendo um único indivíduo ser o representante ideológico da coletividade em litígio.
Como forma de incentivar a legitimação individual, o anteprojeto prevê a possibilidade do juiz arbitrar um valor a título de gratificação pelos trabalhos prestados pelo legitimado ativo particular. Certamente, é um modo de diminuir a incidência do efeito carona em atores privados na ações coletivas. Obviamente, é um incentivo que deve ser usado com ponderação.
Apesar de ser um entusiasta do tema, entendo que a legitimação individual deve ser utilizada em certos casos, em especial na defesa de direitos individuais homogêneos disponíveis. Para questões de maior repercussão, como aquelas relativas ao meio ambiente, penso que a participação dos particulares individualmente considerados não deve ser exclusiva, mas complementar ao MP e às associações civis.
Grande abraço, chefe!
Postar um comentário