domingo, 9 de dezembro de 2007

Presenting Owen Fiss

Muitos juristas não se dão conta das repercussões provocadas pela superação do paradigma de liberalismo e positivismo quanto ao entendimento do direito. Certamente, o ensino das universidades brasileiras tampouco auxilia os estudantes a superar essa forma de compreensão um tanto limitada para as pretensões do direito no Estado contemporâneo.
Ao Estado liberal, a experiência histórica opôs os "modelos" social e regulador. À compreensão positivista do direito se opõem diversas teorias que designo genericamente, sendo incapaz de encontrar melhor expressão, de pós-positivistas, as quais buscam compreensões do direito que dêem respostas que considerem mais do que o plano da legalidade e estejam atentos a outros argumentos de legitimação diferentes da mera "vontade popular" cristalizada na lei.
A superação de noções tradicionalmente constituídas é extremamente difícil por envolver considerações sobre natureza humana, Estado, sociedade, etc., mas qualquer análise minimamente crítica do direito deve considerá-las para se avaliar seus resultados e propor alterações de curso.
Owen Fiss, professor americano da Universidade de Yale, compreende a necessidade de se voltar a aspectos teóricos para compreender o desenvolvimento das instituições jurídicas e propor-lhes caminhos legítimos. Dentre os vários temas que analisa em sua vasta obra, um dos mais importantes se refere aos limites da atuação do Judiciário.
Identificando alterações nas relações sociais características das sociedades de massa, compreende que a necessidade do Estado e do direito se adaptarem à nova realidade. O direito não mais se ocuparia apenas de conflitos entre indivíduos, mas se dirige a situações que envolvem a sociedade inteira e as grandes corporações que a dominam. É assim que o Judiciário também ampliaria sua atuação, passando a tutelar direitos complexos que envolvem diversos grupos sociais.
O texto Formas de Justiça, publicado pela primeira vez em 1979 na Harvard Law Review (vol. 93) desenvolve esse posicionamento tentanto vislumbrar como esse Judiciário deveria agir para desempenhar seu papel legitimamente, o que ocorreria através de uma refundação do processo judicial. As características que atribui ao novo processo judicial se assemelham muito aos caminhos tomados pelo processo coletivo no Brasil, ainda que esse propósito não seja reconhecido a esse novo ramo do direito.
Apresenta-se abaixo um resumo desse longo artigo. Deixo para o leitor observar novas características que o autor atribui ao processo judicial. Gostaria muito de discutir as idéias nele constantes.
Assim, proponho as seguintes questões para reflexão: 1) O processo proposto por Fiss seria capaz de legitimar decisões do judiciário referente à casos de reforma estrutural, considerando que atinge seriamente políticas públicas? 2) Quais conceitos do processo civil deveriam ser modificados nessa perspectiva?
Debatamos! Obrigado antecipadamente pela participação.

Resumo do texto Formas de Justiça, de Owen Fiss. (as poucas notas de rodapé estão ao final do texto)

1. O autor parte de uma função primordial da Constituição no Estado americano que, além de funcionar como organizador das instituições, identifica princípios que conduzem e limitam essa estrutura.
A ambigüidade e conflituosidade desses princípios e entre esses princípios (liberdade, igualdade, devido processo legal, liberdade de expressão, de religião, direito à propriedade, dever de honrar contratos, segurança dos indivíduos e proibição de formas cruéis e incomuns de punição) exigem um labor para definir-lhes o conteúdo à sociedade e às instituições estatais que a compõem. O judiciário participa desse debate através do processo de adjudicação, no qual é permitido que expresse sua concepção de significado aos valores públicos.
O assunto desse artigo é como o modelo de adjudicação tradicional se reformula nos dias atuais para se tornar mais abrangente. Isso é o que o autor chama de reforma estrutural, onde o judiciário passa a concorrer com outros poderes na formação do conteúdo dos princípios constitucionais.

2. Segundo afirma, a reforma estrutural é baseada no fato de que a sociedade é afetada de forma significativa pela operação de organizações de grande porte públicas e privadas, exigindo que essas sejam adequadas aos princípios constitucionais para afirmá-los nos casos submetidos à sua decisão.
Esse entendimento da jurisdição tem como marco o célebre caso Brown v. Board of Education of Topeka, em que a Suprema Corte, sob a presidência de Earl Warren, ordenou e capitaneou toda uma reestruturação do sistema educacional americano onde se distinguia racialmente as escolas. Esse processo foi reafirmado em casos semelhantes, mas também proteção dos indivíduos e suas casas contra os abusos da polícia, respeito aos direitos nos presídios e hospícios, assegurar o devido processo legal na administração do bem-estar social, etc. As referidas decisões que reconhecem tal papel ao Judiciário, segundo Fiss, alargaram o conceito de adjudicação para novas direções.
Nos períodos seguintes, sob a presidência de Warren Burger verificou-se uma posição mais conservadora na Suprema Corte. Apesar de intensos ataques ao novo entendimento do papel da jurisdição, alguns casos confirmaram a postura anterior em casos envolvendo direito de presidiários como no caso Hutto v. Finney (condições das prisões), Bound v. Smith (fornecer bibliotecas de direito e assistência jurídica aos presos), Procunier v. Martinez (invalidação da regulamentação à censura às correspondências), dentre outros.
O período de Burger critica as decisões do período de Warren, considerando entendimento diverso sobre as funções atribuídas aos juízes. Foram suscitados diversos problemas de legitimidade dos juízes no exercício de sua função a serem justificados. Vislumbrava-se um cenário de poderes exacerbados e ilegítimos ao juiz.

3. A primeira crítica comumente apresentada é aquela que coloca em perspectiva ao papel da atuação judicial em face dos outros órgãos de governo. No precedente United States v. Carolene Products Co.[1], manifestou-se a Suprema Corte diretamente sobre o assunto em nota de rodapé afirmando a supremacia do legislativo nesse jogo institucional de atribuição de significado à Constituição. Isso porque haveria uma relação direta entre o conteúdo da constituição e democracia majoritária, sendo os representantes do povo os únicos aptos a captar-lhes os sentidos de desenvolver-lhes as formas de aplicações.
Como conseqüência disso, somente não haveria tal supremacia se houvesse motivo para considerar inadequado o processo legislativo (chamado no texto de falha legislativa como, por exemplo, em restrições indevidas do direito ao voto ou minorias incapazes de articulação política), sendo a atuação do judiciário restrita a essa hipótese.
Esse argumento não foi enfrentado nos julgados da corte de Warren, pois os julgados, especialmente nos casos de segregação eram usados como um tipo composto de falha legislativa onde o grupo vitimado era minoria determinada e isolada cuja participação no processo majoritária era negada, pois em Brown, por exemplo, negros não podiam votar nem tinham plena capacidade de articulação. Por isso tal teoria da falha legislativa impõe verdadeira dificuldade à nova concepção do Judiciário.
Segue resposta de Fiss a esses argumentos:

[a] Conteúdo da norma constitucional: A atuação do Judiciário não pode ser pautada pelo precedente e sua teoria de falha legislativa.
[a.i] Tal teoria escolhe critérios de aferição não correspondentes às situações de intervenção judicial, pois não é só a falta de direito à voto ou incapacidade de organização política que engendram tais falhas legislativas deixando indevidamente desprotegidos determinados grupos, a falta de recursos talvez seja a primordial causa da falta de representação e não pode ser incluída na tese de falha legislativa já que atinge a maioria da sociedade.
[a.ii] A ampliação da reforma estrutural para além da justiça racial deixa em dificuldade a tese da falha legislativa, pois o precedente que a institui não é claro sobre a explicação do papel do Judiciário.
A reforma estrutural de burocracias estatais como escolas que segregam negros, presídios e hospícios que permitem abusos de seus internos, podem ser compreendidas nos limites da falha legislativa ante a irrelevância de representação e organização dos grupos envolvidos. Mas ao se considerar burocracias mais amplas como a polícia ou o fisco, a tese da falha legislativa é de pouca utilidade porque a atuação do judiciário não corrige disfunção no processo eleitoral já que atinge não um grupo, mas toda a sociedade.
Caso se considere que essas organizações que atingem a sociedade inteira estão sujeitas a necessidades burocráticas próprias, desvinculadas dos interesses sociais, a tese da falha legislativa não subsiste. Dessa maneira a supremacia legislativa e o princípio majoritário seriam mitos inventados para alijar a sociedade de decisões burocráticas.
Por outro lado, caso se admita que as organizações de alcance social sejam questionadas por um grupo particular não atingido por disfunções eleitorais (com direito ao voto ou com capacidade de mobilização), não haveria que se falar em falha legislativa, sob pena de incoerência. Isso levaria a supor que qualquer grupo prejudicado por uma decisão política seria uma minoria.

[b] Legitimidade: Outro argumento de inadequação da teoria da falha legislativa baseada no precedente United States v. Carolene Products Co. é o fato dessa não considerar a relação do conteúdo da Constituição e com o exercício da democracia apenas através da regra de maioria. Isso refletiria uma negativa institucional de atribuir caráter especial às disposições constitucionais. A diferença entre as duas teses está na amplitude que cada uma atribui ao papel de interpretação da Constituição.
Em primeiro lugar, a tese da ação jurisdicional mediante falha legislativa não discorre sobre a função da jurisdição nesses assuntos. Além disso, não justifica a preferência que dá aos poderes majoritários ainda quando contrapostos a valores constitucionais.
Os termos da teoria da falha legislativa não são claros, negando aos grupos uma voz superior ao seu número ou organização. Tal entendimento negaria resposta institucional aos direitos de muitos, ante a notória relação entre falta de articulação de interesses e pobreza.
Fiss afirma que a função do juiz é dotar os valores constitucionais de significado através do texto da Constituição, da história e das idéias sociais, buscando o verdadeiro, correto e justo.[2] A função reconhecida ao Legislativo, que tem por objetivo refletir as preferências (interesses) da maioria da população, impede um compromisso com o conteúdo limitador de valores constitucionais.
A teoria da falha legislativa apenas reconhece ao Judiciário a função de limitar o Legislativo quando for expressa a cláusula constitucional nesse sentido. Assim, dá prerrogativa ao Judiciário para, apenas nessa parte, ser um intérprete primário. Somente poderia impedir a prevalência das preferências da maioria em caso de violação literal do texto constitucional.
Para responder, Fiss identifica o Judiciário como um componente da estrutura de poder não restrito às falhas dos poderes majoritários. Independentemente das falhas, seu papel detém esfera de influência própria limitado pelos valores constitucionais cujo significado cumpre conferir.
Assim, v.g. igualdade, liberdade e devido processo legal não têm seu conteúdo totalmente desenvolvido pelas cláusulas constitucionais, mas contêm valores públicos compatíveis com a estrutura da constituição, sendo certo que a ausência de especificidade literal não os torna menos importantes.
É certo que quanto mais se distancia do texto, maior o risco de abuso por interpretações pessoais ao modo realista. Daí afirmarem que é melhor a preferência do povo que a dos juízes. Entretanto não dizem por que o risco de abuso é maior num caso do que no outro. Na verdade, tanto é possível o abuso quanto o acerto.
Essa atribuição não é legitima com base nas qualidades pessoais ou conhecimentos específicos dos juízes, mas por necessidades institucionais e ideológicas. E a legitimidade se dá através do processo de adjudicação, caracterizado no diálogo processual (aproximado da idéia de contraditório) e da independência da função.
O referido diálogo é identificado nos valores públicos, marcado por características especiais: [i] Não há controle sobre a pauta de decisão; [ii] Não há controle sobre quem deve ser ouvido; [iii] Obriga-se à resposta da demanda e responsabilização pessoal por elas; [iv] Obriga-se a justificar as decisões.
A justificativa das decisões é assunto da teoria do direito, identificando-se onde deve ser pautado o raciocínio (vontade dos legisladores, ética, estrutura da Constituição, etc). Só se destaca duas coisas [i] Fundamento não é preferência pessoal; [ii] Deve transcender crenças individuais ou políticas, afinando-se com a moralidade pública.

4. Os poderes atribuídos ao juiz na proposta do texto, de reforma estrutural através do Judiciário, levantam questões de legitimidade respondidas a partir limitadores ligados ao processo de adjudicação. Entretanto, a adjudicação tradicional (resolução de controvérsias) não comporta os objetivos almejados (reforma estrutural), isso porque restrito a algumas características básicas: conflito bilateral, árbitro imparcial e declaração do direito. Necessário compará-los para verificar se a adjudicação da reforma estrutural garante a legitimidade à decisão judicial.

[a] Objeto do processo judicial: Na adjudicação voltada à resolução de controvérsias pressupõe-se que a sociedade é harmoniosa perturbada por fatos isolados aos quais o Judiciário deve se reportar investigando e decidindo para garantir a pré-existente harmonia.
A reforma estrutural refere-se a perturbações causadas pela ação de grandes organizações à vida social, visando atacar práticas (não incidentes) que provocam os desequilíbrios que ameaçam valores constitucionais, impedindo a perpetuação de tais condições.

[b] Estrutura de partes:
[i] Autor: A resolução de controvérsias consagra como autor a vítima, representante ou beneficiário os quais tem disponibilidade sobre o direito violado, aplicando-se ética do mercado.
A reforma estrutural desgarra-se da ótica individualista, passando a conceber grupos sociais desgarrando-se da estrita identidade entre vítima e autor. Daí conceber técnicas de substituição para judicialização desses conflitos, como adequação da representação ou advocacia institucional.
Dadas as características do conflito de grupo, incentiva-se na reforma estrutural a intervenção de vários representantes com diferentes ponderações sobre o interesse do grupo vitimado já que pode se mostrar como plurilateral.
Além da diferença entre vítima e autor, compreende-se na reforma estrutural a diferença entre vítima e grupo beneficiado pela decisão, que não precisam ser coincidentes.
[ii] Réu: No modelo de controvérsias espera-se que no pólo passivo seja identificado o representante do direito contraposto, autor do ilícito e destinatário da medida judicial, tudo concentrado num único indivíduo.
No modelo estrutural, as funções são separadas. Autor do ilícito (conceito individualista que pressupõe intenção e escolha) pode ser um agente público, mas nem por isso será ele o réu. O foco é a condição social e a dinâmica burocrática, destinando medidas judiciais para erradicar ameaça para o futuro sendo predominante a técnica de injunction segundo as necessidades do caso. O ato ilícito é mais verificado na desobediência das ordens judiciais.

[c] Postura do juiz: No modelo de solução de controvérsias, era previsto um papel passivo para o juiz, pois se confiava às partes o interesse da causa. Isso já vinha sendo revisto diante das desigualdades que determinavam as defesas dos litigantes garantindo uma decisão informada.
No modelo de reforma estrutural, há razões diferentes para refutar a passividade do juiz, originadas na complexidade da representação de interesses no processo. Não se pode simplesmente deixar ao autor que escolha o réu, merecendo este uma defesa coerente e merecendo o processo um diálogo proveitoso. O réu não fala só por si, mas pelos que participam da organização analisado pelo processo. Não é o juiz o representante do interesse, mas deve utilizar de técnicas que possam possibilitar uma defesa mais eficiente: notificação, convite à amicus curiae, special masters (que tambem têm função de representação, visto que constituem em parceria com o juiz um instrumento de análise dos fatos para implementação do comando adequado).

[d] Fase de execução: No modelo de solução da controvérsias, a concepção americana é de que a execução se refere a corrigir o u prevenir evento a cuja decisão compreende e tutela totalmente. Seria uma fase esporádica, no sentido de não ser obrigatória, e destinada a chegar ao final com a realização do direito material.
No modelo reforma estrutural, não necessariamente é um processo destinado a acabar com determinado evento, pois há um longo e contínuo envolvimento do juiz com a instituição. A tarefa vai além de declara certo ou errado, ou calcular danos, mas na eliminação de condições que agridem valores constitucionais. As intervenções são sucessivas, limitadas pela capacidade dos envolvidos e possibilidade de solução, por vezes experimentais.

5. Identificadas tais potenciais de mudança da adjudicação, perde suporte a crítica que afirma ser o modelo de solução de controvérsias o único a caracterizar a atuação judicial. A função que essa desempenha o Judiciário no quadro institucional de dar significado aos valores públicos não é encarcerada nos lindes restritos desse modelo.
O modelo de solução de controvérsias é devedor da tradição que identifica no Judiciário um terceiro desinteressado procurado por particulares para decidir imparcialmente conflitos. Tal como a teoria contratualista essa tese não parte de um relato da história social não observando fenômenos modernos como questões de antitruste, ambiental ou valores mobiliários. A imagem que se deve ter é a do soberano que envia oficiais ao território para dizer e fazer cumprir o direito.
Nesse sentido o juiz não mais se restringe a controvérsia individual reguladas pela norma, mas reestrutura instituições argumentando além da norma. Consequentemente, acumula competência para resolver outros tipos de conflito que demandam, por exemplo, a regulamentação de condições de trabalho ou a preservação de mercados.
Apesar do juiz também agir como árbitro nos conflitos privados, a reforma estrutural o coloca na posição de apresentar o conteúdo de normas sociais amplas e reestruturar instituições. Essas as funções para a qual é escolhido politicamente (nos EUA os juízes federais são apontados pelo Presidente e os estaduais em sua maioria eleitos) e pago pelos cofres públicos.
Contrariamente a essa posição, três são os argumentos que tentam identificar a solução de controvérsias como a única possibilidade da adjudicação:

[a] Crítica instrumental de Horowitz: Aponta os riscos identificados na reforma estrutural como desabonadores de sua conduta. A solução de controvérsias seria o que a corte faz de melhor e por isso deveria ser sua única atividade. Indica que a tarefa da reforma estrutural é mais perigosa na produção do direito e na implementação de medidas necessárias.
Não é claro o porquê de se restringir a atuação do Judiciário a solução de controvérsias, apenas por ser onde se atua melhor. Outras repartições tem atividades complexas e similares. Nem há motivo para supor que assumir essa função comprometa.

[b] Prioridade histórica de Chayes: Segundo o professor de Harvard o modelo de solução de controvérsias é prioritário em relação a novel reforma estrutural, que identificou com direitos de natureza pública (diferente de Fiss que a considera atrelada às características organizacionais da sociedade). Chayes enfatiza as diferenças entre os modelos, mas não lida com as questões de legitimidade, limitando-se a referir a possibilidade de aceitação popular do mecanismo.
Fiss não concorda muito porque sempre identificou na função jurisdicional esses poderes. Afirma a modificação se refere a forma de adjudicar mudou com a mudança da estrutura social com o surgimento de uma sociedade dominada por organizações. Conferir valores públicos sempre teria sido o papel das cortes mesmo em se tratando de questões individuais, preservando-se a tradição da common law.
Tal posicionamento está ancorado no preceito de que somente há legitimidade com base no consentimento público. Assim, a prioridade histórica da solução de controvérsias, a tradição, poderia se transformar em prioridade normativa, negando-se a reforma estrutural. Mas isso não é verdade conforme antigos precedentes que indicam existência do modo estrutural (liquidação judicial nas Equity e falências). Além disso, a aceitação poderia ser obtida com os resultados benéficos das medidas.
Por outro lado, e não menos importante, argumenta-se que a teoria do consentimento é questionável. Se é fato que a democracia é construída pelo consentimento popular, esse se refere ao sistema como um todo e não sobre toda e qualquer instituição. Nesse sentido, a legitimidade de cada instituição dependeria da capacidade da instituição em desempenhar função e respeitar limites dessa função. O judiciário funciona como um canal de expressão da população integrado com os demais. Insistir numa aprovação consensual poderia até mesmo comprometer a independência desse canal.

[c] Estratégia axiomática de Fuller: Parte da teoria do consentimento. Pressupõe necessidade de participação dos interessados na tomada de decisões, o que existe no modelo de solução de controvérsias mas não na reforma estrutural. Destaca que há diversas formas de decisão: adjudicação, votação e negociação. Embora não explique sobre a centralidade do consentimento, coloca-a no centro da adjudicação que seria possibilitada através da participação individual. Assim, Fuller firmou os limites da adjudicação, excetuando-lhes os conflitos policêntricos (apesar de só publicado muitos anos depois, o ensaio foi escrito antes da Warren’s Court).
Não há uma definição exata de policentrismo, mas tenta-se demonstrar como um tipo de controvérsia multifacetado, como uma teia de aranha onde mexer em uma parte implica repercussões múltiplas. A explicação de Fuller apresenta vários exemplos para dizer por que esses conflitos não são passíveis de adjudicação: afirma que esse tipo é resolvido por uma intuição gerencial incompatível com soluções racionais que vinculam o Judiciário.
Fiss diz que não é a razão que impede a resolução do conflito pela adjudicação, mas a impossibilidade de todos participarem que Fuller reputa imprescindível. Assim Fiss diz que isso pode ser resolvido pela participação técnica de representantes. Somente assim poderiam ser tutelados casos que necessitam de tutela jurisdicional (cita o caso de uma prisão que praticava punições cruéis, exigindo uma reorganização estrutural).
Fuller partiria de uma leitura descritiva da realidade na qual o processo de adjudicação seria um processo social de discussão particularizada de controvérsias. Votação e negociação seriam processos sociais que comportariam decisões mais amplas. Todos partem de uma legitimidade centrada na participação do indivíduo, sendo essa a característica central também na adjudicação. Entretanto, Fiss sustenta que a tese descritiva de Fuller não tem o suporte fático que postula, pois os limites que impõe à adjudicação deixam de compreender diversas questões consideradas como tal.
A razão é elemento legitimador e pode servir à adjudicação, não havendo a necessidade premente da participação individual. A razão ingressaria por meio dos representantes e da decisão do juiz, pois é essa que dá significado aos valores constitucionais.
A participação individual é o axioma de Fuller em relação à adjudicação. Axiomas devem refletir mais do que uma intuição, devendo ser avaliado a partir de suas conseqüências e implicações.
Assim a questão não é se devem existir processos sociais (como a solução de controvérsias) que possam promover o direito a participação, mas se a forma de adjudicação que necessite violar tal pressuposto (reforma estrutural) é legítima. Se assim fosse, importantes questões deixariam de ser tuteladas e valores institucionais não garantidos.
Muitos erros podem ser cometidos pelo Judiciário, mas não é essa a questão principal. A questão é saber se uma atuação dessa forma significaria abuso dos limites da adjudicação.
Esse axioma representaria, ademais, apenas um trunfo formal do individualismo através da exacerbação da participação mas deixaria a mercê das grandes agregações de poder. A restrição aos canais políticos pode ser uma farsa impossível de tangenciar como um mecanismo de preservar o poder das corporações.
O axioma é baseado numa sociedade que já não existe, horizontalizada, entre indivíduos. A realidade atual é vertical onde os principais agentes são as corporações e os indivíduos aparecem sem amparo, daí porque ser necessário criar artificialmente mecanismos para adequada proteção.
Esse o motivo pelo qual Fiss concebe o poder estatal personificado no juiz que adjudica, tratando os tribunais como fontes coordenadas do poder estatal, moldade pela função e pelo cenário social.

6. Apesar dessas razões que expandem a adjudicação, esta ainda é restrita ao diálogo processual e independência. Essa limitação restringe o poder das cortes em atribuir significado aos valores constitucionais.
O diálogo exige um cuidado especial para considerar os múltiplos lados de cada discussão, ensejando um intenso diálogo entre partes e juiz que não é residual nem difícil à reforma estrutural.
Entretanto, a questão de independência, sim, pode ser comprometida ante a necessidade de se dar efetividade à decisão judicial, o que forçaria o juiz a reconstruir organizações, abandonando sua independência para adentrar no mundo das políticas.
Há problema referente à tradicional vinculação entre medida judicial e violação do direito (princípio determinante). Na função que se atribui à adjudicação via reforma estrutural é necessária uma maior liberdade para a justiça e efetividade da decisão, sendo necessário essa liberdade para que as cortes tenham a liberdade de especificar o cumprimento dos valores constitucionais aos quais se atribui significado (considerações subsidiárias). Exemplo disso é o caso da prisão que usava de tratamentos cruéis e atentava contra a dignidade da pessoa humana ao não prover água quente, chuveiros ou por abusar do confinamento isolado (Hutto v. Finney). Assim, há várias formas de se atingir o propósito da reforma.
A relação entre declaração e remédio é instrumental e esta sujeita a falhas. São fases do mesmo processo de dar significado aos valores públicos, imprescindível para afirmar o poder jurisdicional. O problema da atividade de efetivação é sua qualidade continuativa e prospectiva que coloca o juiz na difícil situação de ter de efetivar sua medida.
Diversas situações são impassíveis de controle pelo juiz que fica a mercê do recebimento pelo corpo político, fazendo com que o juiz transija entre ideal moral e realidade para proporcionar a caminhada em direção ao que deveria ocorrer. Há vários exemplos disso, como caso de segregação das escolas de New Orleans (Bush v. Orleans Parish School).
Nesse ponto, alguns seriam levados à descrença de afirmar que a atividade adjudicatória não serve para esse tipo de tutela. Não há resposta para isso. Fiss sugere viver com o dilema buscando-se, ao máximo, viver conforme os valores constitucionais.

[1] Esse precedente não tem importância de um ponto de vista teórico, mas histórico. A decisão consolidou vitória dos progressistas que lutavam politicamente para implementar o New Deal, que encontrava dificuldade por causa do controle judicial (p. 31).
[2] Aqui cita Dworkin no artigo No right answer? e na coletânea Levando direitos a sério.

4 comentários:

Anônimo disse...

Caro Daniel. Aplaudo sua iniciativa de alimentar um espaço de discussão de temas processuais. No contexto de inanição intelectual que você denunciou, não poderia haver medida mais necessária e promissora. Tentarei manter freqüentes minhas visitas, farei um link para cá a partir de meu blog e espero entender minimamente as discussões levantadas, para poder participar com comentários. Um abraço!

Anônimo disse...

Quero começar falando da "superação" dos paradigmas positivista e liberal. Nos últimos tempos, tenho posto em questão para mim se o uso da lógica dos "paradigmas" que se sucedem (na esteira de "A estrutura das revoluções científicas", de Thomas S. Kuhn) é mesmo apropriada para descrever as mudanças de orientação epistemológica e valorativa no Direito. Da maneira como tenho representado essa problemática para mim mesmo, as questões relevantes a serem respondidas nesse ponto seriam as seguintes:

1) Há paradigmas no Direito? Em que sentido os há?

2) O positivismo jurídico e o liberalismo moderno foram paradigmas do direito? Em que sentido o foram?

3) O positivismo jurídico e o liberalismo moderno foram superados em direito? Em que sentido o foram?

Como se sabe, Thomas S. Kuhn falou que a história da ciência (mais particularmente, a história da física) devia ser vista como uma sucessão de paradigmas científicos.

Por "paradigma" Kuhn queria designar, em primeiro lugar, uma teoria-paradigma, quer dizer, uma teoria que, durante certo tempo, é tomada pelos cientistas como modelo de teoria naquele campo (a física de Aristóteles, a física de Galileu, a física de Newton, a física de Einstein etc.) e como fonte dos quebra-cabeças que os cientistas daquele campo procurarão resolver.

Por "paradigma" Kuhn queria designar também, em segundo lugar, um certo modo de conceber a disciplina, seu objeto, seu método, seus pressupostos, seus propósitos etc., que durante certo tempo condiciona e orienta tanto a colocação das perguntas como a procura das respostas em certo campo científico.

A prevalência de certo paradigma durante certo tempo se deve a um significativo consenso dentro de uma comunidade científica, o qual instaura um modo "normal" de fazer as coisas dentro daquela ciência ("ciência normal"), que prevalecerá até que o paradigma se depare com problemas que ele não consegue resolver.

Aí se detonará uma crise durante a qual haverá um modo distinto do "normal" de fazer aquela ciência ("ciência extraordinária"), em que os cientistas não estão, como no período anterior, apenas levando adiante um paradigma consensual, mas estão tentando solucionar os problemas que levaram o paradigma à crise, seja rearranjando o paradigma de modo que passe a dar conta desses problemas mais ou menos nos mesmos termos que antes, seja propondo mudanças radicais no paradigma, as quais, se forem adotadas, darão nascimento a novos paradigmas, distintos do anterior.

Podem ocorrer várias crises sem que o paradigma precise ser substituído. Contudo, cedo ou tarde, os problemas que levam o paradigma a suas crises não poderão mais ser solucionados por meio de rearranjos do paradigma dominante e uma mudança de paradigma se tornará inevitável. A essa mudança de paradigma Kuhn chama de "revolução científica".

Uma revolução científica não é uma transição gradual de um paradigma a outro, mas sim uma ruptura, súbita e descontínua, da prevalência de um paradigma, com sua substituição por outro, em termos do qual o anterior não pode sequer ser traduzido. Isso quer dizer que o novo paradigma reinventa a disciplina em questão, a colocando em novos termos, dentro de novos pressupostos e numa nova direção, de modo que não se pode ver a relação com o paradigma anterior a não ser em termos de sucessão descontínua, substituição pura e simples.

(continua)

Anônimo disse...

Mas é claro que nem todo uso dos conceitos de "paradigma", "crise de paradigma" ou "superação de paradigma" precisa remeter aos exatos termos em que Kuhn pensou esses conceitos. Muito uso desses conceitos trabalha com uma referência apenas "analógica" à teoria de Kuhn. Fala-se, então, de "paradigma" para designar um certo modo de ver ou pensar as coisas de uma disciplina, que prevalece por certo tempo até ser sucedido ou substituído por outro.

É claro que esse é um sentido muito mais fraco de "paradigma", que tornará muito mais fracos, também e por conseguinte, os sentidos de "crise de paradigma" e "superação de paradigma". A meu ver, trata-se de sentidos tão fracos e distantes da teoria de Kuhn que a continuidade do uso de sua terminologia acaba se convertendo num fator de engano, na medida em que sugere que, no campo científico em questão, as coisas se passam como figuradas naquela teoria, quando na verdade estaria longe de ser assim.

Por isso, eu reservaria o uso dos termos "paradigma", "crise de paradigma" e "superação de paradigma" apenas à história daquelas disciplinas científicas em que faça sentido aplicar o modelo sugerido por Thomas S. Kuhn. Nas demais, em que o uso desses termos é apenas "analógico", eu recomendaria afastá-los, para benefício da comunicação e para evitar enganos e manipulações da lógica kuhniana das revoluções científicas em campos para os quais ela não se aplica de modo algum.

Jürgen Habermas, na sua obra "Pensamento pós-metafísico", usa o conceito de "paradigma" para falar de fases do pensamento filosófico, e na sua obra "Direito e democracia: entre facticidade e validade" usa o mesmo conceito para falar de fases do pensamento jurídico moderno. No pensamento filosófico, teria havido os paradigmas "ontológico", "mentalista" e "lingüístico", enquanto no pensamento jurídico os paradigmas seriam o "liberal", o "social" e o "procedimental" (este ainda nascente e para a afirmação do qual Habermas mesmo tenta contribuir). Vou falar agora mais especificamente do uso, por parte de Habermas, do conceito de "paradigma" para designar as fases do pensamento jurídico moderno.

(continua)

Anônimo disse...

Para Habermas, um paradigma jurídico é um certo modo de conceber o indivíduo, a sociedade e o Estado, com suas mútuas e variadas relações. A partir dos paradigmas, as normas jurídicas seriam produzidas, interpretadas e aplicadas. Desse modo, até as mesmas normas jurídicas (os mesmos significantes) se converteriam em diferentes normas jurídicas (em diferentes significados) se fossem interpretadas e aplicadas por dois paradigmas jurídicos diferentes. Para ficar em apenas um exemplo, a norma constitucional que prevê o direito à propriedade seria lida pelo paradigma liberal com ênfase na proteção contra o roubo e o confisco e no paradigma social com ênfase à sua função social e à sua justa distribuição.

O paradigma liberal teria sido uma forma de ver a sociedade com centro no indivíduo como titular de direitos invioláveis, identificando as intervenções estatais como fatores de constrangimento da liberdade e de distorção da justiça, enquanto o mercado seria o espaço que, desde que funcionasse por sua própria lógica, quer dizer, sem intervenção estatal, asseguraria ao mesmo tempo o quantum apropriado de liberdade e de justiça. Isso recomendaria um Estado mínimo, capaz apenas de assegurar condições de ordem e segurança que tornem possível o mais amplo e livre trânsito das relações econômicas e sociais.

O paradigma social, por sua vez, teria sido um modo de ver a sociedade com centro na comunidade e nas suas relações de solidariedade, vendo as intervenções estatais como necessárias para manter a sustentabilidade do mercado e um mínimo de justiça social, enquanto o mercado e a sociedade, livres das intervenções do Estado, são vistas como fatores espontâneos de exploração e desigualdade crescentes. Isso recomendaria um estado interventor e provedor, capaz de proteger a sociedade contra a lógica de exploração e desigualdade do mercado e de proteger o mercado contra sua própria lógica de monopolização e desequilíbrio.

O paradigma procedimental, por fim, seria um modo de ver a sociedade com ênfase na esfera política (e não na econômica, como tinham sido os dois anteriores) e na autonomia pública (e não na privada, como tinham sido os dois anteriores). Veria tanto o mercado quanto o Estado como esferas que, embora necessárias à reprodução material da sociedade, são potencialmente ameaçadoras da liberdade e da igualdade individuais e coletivas, motivo por que se deve buscar a mais ampla e ativa participação dos indivíduos e grupos na esfera pública política, promovendo o mais amplo e livre debate entre todos os pontos de vista plurais e iguais existentes na sociedade. Segundo Habermas, os novos movimentos sociais (ecológicos, raciais, sexuais, etários etc.) indicam que pautas até então negligenciadas e grupos até então subestimados precisam ingressar ao debate de maneira mais intensa, tematizando motivos que estão para além de questões meramente econômicas (do mercado) e burocráticas (do Estado), mas são também simbólicas e normativas, com vistas à presente e às futuras gerações.

(continua)